Meu conto de Natal, para as minhas netas – com o maior Amor do mundo – para um dia lembrarem também
Hoje, 29/01/2019, faz três anos que o meu Kilamba Vicente se despediu desta vida terrena e nasceu para um novo mundo. Natal vem de “Natalis Solis Invictus”, isto é, “Nascimento do Sol Invencível”, celebrado pelos pagãos romanos no alvor do dia 25 de dezembro, que os cristãos adotaram ulteriormente para comemorar o nascimento de Jesus “o Cristo”.
Assim, nada melhor na presente data do que publicar um conto de Natal do Kilamba Vicente. Decretou Tavares de Almeida (1977): “Os grandes Mortos têm essa qualidade de vida, de permanência que os torna companheiros e oráculos pelo mistério da sua intrínseca contemporaneidade”. Assim é hoje, ainda para mim, o meu Kilamba Vicente, que enfrentou todos os obstáculos da vida como um “casca grossa com o coração de manteiga”– como o classificou o saudoso Sr. João Bettencourt – aliás, como eu sempre almejei ser... Recordo-o SEMPRE com alegria, meu Pai, porque só devemos chorar os nossos mortos se somos indignos do seu exemplo!
O conto natalino foi escrito em 15/12/1995 e publicado em 19/01/1996, no jornal Correio de São Jorge. É um vislumbre de impressões muito pessoais do Natal ocorrido seis meses após a chegada a Angola de um jovem de dezanove anos, imerso numa realidade bem diversa das Ilhas do Mar Poente, onde nasceu e foi criado.
Figura 1-Uma visão do artigo original.
Com a palavra,
Vicente Teixeira de Matos.
É já privilégio da minha idade, lembrar o passado; e referente à quadra festiva, alguns Natais que já vivi.
Hoje venho relembrar um Natal diferente, dum amigo muito chegado: corria o ano de 1939, que, para nós, neste final de milénio, de todas as maravilhas, violências, misérias e incerteza, cheira a poeira dos séculos! Na Europa, e logo de seguida no resto do mundo, os homens ensandecidos batiam-se ferozmente, em nome do poder e da ganância, do racismo e da liberdade. Em Angola, terra onde flutuava a bandeira das quinas – era então um oásis de paz e de abundância, à parte a falta de artigos importados – como combustíveis, pneus, bacalhau, azeite e outros mimos europeus que, não faziam falta ao povo comum. A tradicional abundância tropical, a todos provia – cereais, caça, frutas, peixe; eram abundantes e saborosos.
O bizarro personagem deste escrito, era um jovem açoriano de S. Jorge, escassos seis meses de estadia em Angola, 19 anos acabados de fazer, sujeito ao duro choque da mudança, de S. Jorge e de Angra do Heroísmo do tempo de aulas, para o abismo de diferenças culturais e paisagísticas – do mato angolano daquela época! Que, se não conseguiam quebrar o entusiasmo e o ânimo, davam pelo menos para espantar e moer qualquer novato.
Figura 2-O “bizarro personagem”do conto com 18 anos, quando rumou a Angola, e nos seus pletóricos noventa e cinco (95) anos.
A região em que se encontrava o nosso açoriano era uma área de transição entre o Planalto Central do Huambo e o Planalto da Huíla (Sul), meio caminhos dos 440 km, entre Huambo (Nova Lisboa) e Lubango (Sá da Bandeira), onde principiam a aparecer as tribos de pastores, que povoam todo o Sul de Angola, com as suas culturas sui-generis.
Figura 3-A cidade de Angra do Heroísmo, com o Monte Brasil, ao fundo, na Ilha Terceira.
A povoação onde o nosso jovem assentou arraiais chamava-se Tchicomba-a-Velha, antigo posto militar, suplantada por Tchicomba-a-Nova, a uns 20 km a norte. A velha povoação era formada por duas casas comerciais, construções tipo comboio, de pau a pique barradas de argila caiada de branco, sendo os comerciantes os únicos europeus, população agora acrescida com o jovem, que ali viera parar a fim de gerir a fábrica de manteiga, sediada numa das casas, manteiga obtida com o leite adquirido aos pastores nativos. Paredes meias, ficava a aldeia nativa, onde pontificava o Soba Grande José Tchibinda, senhor de dez mulheres, bastos filhos, filhas e netos, e possuidor da mais lustrosa manada de vacas nativas, que o moço jorgense nunca julgaria vir encontrar naquele sertão. Para lá do rio, ao fundo da planície, as ruínas do fortim, paredes de tijolos cozidos ao sol, símbolo duma época passada.
Figura 4-Uma família de pastores Mumuíla, Huíla, Sul de Angola (Fonte: pinterest.com).
Depois duma estadia de escassos dois meses, aproximava-se o Natal – o primeiro Natal africano do nosso jovem açoriano – e devido à dificuldade de comunicações e impossibilidade de parar a fábrica, não via qualquer possibilidade de o passar junto dos pais e irmãos, que viviam nos arredores de Nova Lisboa, numa fazenda agrícola, a 230 km. O seu anfitrião – enérgico beirão, que viera também para Angola com 18 anos – iria festejar o Natal com a família que vivia, que vivia em Sá da Bandeira, por motivos dos estudos dos filhos. O vizinho – um rijo casmurro transmontano – iria também passá-lo com conterrâneos, longe dali.
Habituado aos Natais simples e familiares da sua infância jorgense, ou aos Natais alegres da Angra festeira e encantada dos anos trinta, pois nessa época os estudantes de fora não iam passar o Natal a casa, e por isso as Missas do Galo na Sé Catedral e as festas tinham o perfume da mocidade.
Figura 5-A Sé Catedral de Angra do Heroísmo, Ilha Terceira, Açores.
Agora, sozinho naquela casa , não via perspectivas alegres e festivas para passar o Natal, rodeado de nativos, de que mal conhecia os costumes e as reações. Com a agravante, que o cozinheiro da casa, (em Angola eram os homens que prestavam serviços de cozinheiros e as mulheres de lavadeiras) abandonara o serviço, ausentando-se da região, sem dizer água vai; e assim o nosso jovem obrigava-se a recordar o que faziam as mulheres da sua família, e procurar transmitir ao jovem ajudante de cozinheiro, umas lições (?) de amassar e cozer pão, cozinhar um cozido ou uns bifes de caça, coar café, e, como havia abundância de leite, apresentar uma travessa de arroz doce!
Chegada a véspera do Natal, o nosso açoriano, qual aprendiz de feiticeiro, armou-se da coragem inevitável, aumentou para dois os ajudantes, prepararam uma cozedura de pão – que ficou mais parecia bolo do Pico para uso de marinheiro – providenciaram um cozido de pechelim (um parente do bacalhau dos mares do Sul, pescado e seco em Moçamedes), não faltou arroz doce e um café fortíssimo, capaz de acordar um morto; estava pronto aquele banquete de Natal! O almoço! Ficou destinado um churrasco de galinha com piri-piri, no tempo em que uma pequena galinha gentia custava 2$50!
O nosso aprendiz de angolano ceou, com calma e alguma dificuldade, como se calcula, e depois foi deitar-se debaixo do mosquiteiro, única defesa contra os mosquitos transmissores do paludismo e da biliosa, da qual poucos escapavam naquela época. Chovera e trovejara durante o dia, mais um sinal de alegria, penhor de pastos fartos para o gado e duma prometedora sementeira. A noite estava límpida e a lua inundava a selva, as casas e os terreiros, os bichos e as gentes, com um claro luar que nunca vira igual!
Na aldeia, o Soba Grande mandara matar um grande garrote (novilho), que, com algumas peças de caça, prodigalizava churrasco para todos, pirão abundante, tudo regado com bingundo (hidromel), que se bem fermentado, chegava a embriagar! Ao mesmo tempo, soaram os tambores na tépida noite tropical, com danças e cantares na língua nativa, alegórica maneira daquele antigo povo de pastores – cristianizados ou não – saudarem com alegria não fingida a Noite diferente, na qual nascera um Menino para trazer a todos os homens a Paz e a Boa Nova!
Segundo calculam, o moço açoriano só pregou olho ao amanhecer, mas dessa estranha e solitária noite de Natal, retirou várias lições que acabou por recordar pela vida fora:
A- O Doce Jesus, que naquela noite era lembrado por todo o Mundo, na Europa em guerra ou na abundância de luzes e banquetes, também nascera para aqueles humildes pastores africanos – sofridos e alegres – naquela mágica noite de luar!
B- A partir daquela noite, o açoriano saudoso das suas ilhas, convertera-se àquela Terra larga e prometedora e, passaria a respeitar aquele Povo, de cultura tão diferente do seu, mas tão próximo da sua humanidade!
C- A Noite de Natal, qualquer que seja como a iria passar no futuro, seria acima de tudo um estado de alma – uma Noite Feliz!
Passados meses, pela proibição de compra de leite aos nativos, o nosso açoriano deixou Tchicomba-a-Velha, para não mais lá voltar.
Contudo, os outros trinta e quatro Natais que passaria em Angola, foram passados primeiro no Huambo junto dos pais e irmãos, depois em S. Jorge do Catofe – a Décima Ilha dos Açores, como a crismou o saudoso jornalista terceirense Dr. Dutra Faria – junto com a sua mulher e filhos, o primeiro deles nascido numa inesquecível Noite de Natal. Qualquer daqueles Natais teve o seu carisma, sem fazer esquecer o primeiro Natal de angolano.
Hoje, retornado há vinte anos aos Açores, obrigado pela ignorância, cobiça e irresponsabilidade dos homens, o moço açoriano de então, os cabelos já completamente brancos, continua a sonhar com aqueles Natais dos trópicos, de paz e doçura singulares.
Será que a Paz voltará um dia àquela Terra e àquele Povo martirizados?
“Glória a Deus nas alturas e Paz na terra aos homens de boa vontade”.
A terminar, um grande abraço do
Kabiá-Kabiaka.
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