domingo, maio 02, 2021

GENTE DO CORAÇÃO REPARTIDO – CAP. II

DO QUE VAMOS TRATAR

Vicente Teixeira de Matos

“A nossa pequena glória é responder à grandeza do que foi grande”– na sua humildade – “e morrer com o valor surpreendido entre os escombros”...

Vicente Ferreira, in “Carta ao Futuro”.

     Do S. Jorge do Catofe crismada, como se refere no capítulo anterior, a “Décima Ilha dos Açores”.

Figura 6- Visão do satélite da posição do Catofe, com a latitude 10,933oS e longitude 14,967oE (Fonte: Google Earth).

Figura 7- Visão do satélite com a posição do Catofe no contexto geográfico de Angola, mais precisamente num ponto central do outrora distrito do Cuanza Sul e quase a meio caminho entre as cidades de Luanda e Huambo (Fonte: Google Maps).

Figura 8- Visão do satélite com a localização do Catofe no contexto geográfico do então distrito do Cuanza Sul, junto à estrada Luanda-Huambo, hoje denominada EN120  (Fonte: Google Maps).

Figura 9- Mapa do relevo da região central do Cuanza Sul, com o Catofe numa região de planícies ou baixas entre morros (Fonte: Google Maps).

     É a pequena estória, autêntica ou romanceada, no fundo verdadeira, da brava gente açoriana – na maioria jorgense – rija e trabalhadora, casca grossa e lúdica, de falas mansas e entusiasmos comedidos, joeirada – “como quem não quer a coisa”– no verdejante, misterioso e intimidante mato angolano. Nos muitos vales, planaltos e encostas, enquadrados pelo rio Catofe e seus muitos afluentes, até ao rio Nhia (Ñya), a poente, encaminhando-se para o rio Pombuíge (Phumbwiji), a norte e nascente. Atravessados pela estrada de Luanda – a 360km – ao Huambo – a 240km. No Sub-Planalto de Benguela, cerca de 1360m de altitude, à distância média de 200km do oceano Atlântico. No concelho de Quibala, uma vila a 15km, distrito de Cuanza Sul, da então Província de Angola.

Figura 10- Mapa hidrográfico onde estão representados os rios Nhia e Pombuíge, que são ambos afluentes do rio Longa; verifica-se no mapa que o rio Nhia (Ñya) tem um afluente – o rio Catofe – cuja nascente fica próxima ao rio Pombuíge (Phumbwiji) (Fonte: adaptado da internet).

     Claro que, principalmente nos primeiros tempos, o clima se mostrou adverso por ser muito diferente das ilhas açorianas. Na região do Catofe, como em toda Angola, o clima contempla duas estações: a das chuvas (nvula, no dialeto Kimbundu dos Kibalas), que dura aproximadamente 9 meses – setembro a maio – e a temporada seca conhecida como cacimbo (kixibo), de 3 meses – junho a agosto. Esta periodicidade, por vezes, variava mais em detrimento da estação chuvosa, com o prolongamento do cacimbo. A estação seca se apresentava sempre exasperante para o homem açoriano que só vivia da agropecuária. No cacimbo não caía do céu uma só pinga de água; valia a água dos riachos e rios que nunca secavam, embora ficassem com caudal bastante diminuído, e as medidas preventivas adotadas nas “chuvas” como a sementeira de milho, forrageiras e outros alimentos para o gado, normalmente, reservados por ensilagem ou outras estratégias. Outra dor de cabeça trazida durante o cacimbo aos agricultores açorianos do Catofe era o hábito cultural dos indígenas realizarem queimadas – uximika mwíôzo – do capim seco para afugentar os animais silvestres durante as suas campanhas de caça coletiva, sob a orientação do “soba” e/ou dos “mais velhos” de cada comunidade. Por incrível que pareça, o animal mais caçado durante as queimadas do cacimbo era o rato monteiro, abundante na região e muito apreciado pelos autóctones.

Figura 11- Rato monteiro caçado pelos Kibalas na região de Quibala/ Catofe (Fonte: www.makaangola.org).

     A maior adversidade da estação das chuvas era sem sombra de dúvidas o paludismo ou malária, devido a uma maior proliferação de mosquitos transmissores. Trata-se de uma doença infecciosa que origina arrepios de frio, tremores, sudorese, fadiga, dores cíclicas de cabeça e febre alta, o que pode causar até a morte. Contra ela ainda não há vacina, por isso, foi a maior responsável pela mortalidade por doenças em 2018, em Angola, segundo informações da imprensa.

sexta-feira, abril 30, 2021

A MINHA SAVANA - Parte 2/5

     A flora, que ainda permanece na minha memória, não era muito exuberante e diversificada. Realmente, a minha savana era mais rica em árvores de pequeno porte e arbustos que adorávamos chamar indistintamente de bissapas ou vissapas. Era um neologismo tão incorporado ao novo vocabulário dos colonos açorianos que se viam gostosamente africanizados. As árvores atingiam maior porte nas matas – muxitos – circundantes das nascentes dos riachos afluentes do grande rio. Nesses muxitos, de tempos em tempos, num retiro misto de cura e reflexão espiritual, se refugiavam os jovens bantos que passavam pelo rito obrigatório da circuncisão, na transição oficial da puberdade para a idade adulta, aptos a assumir maiores responsabilidades de perpetuação da espécie. Então, ali recorriam às virtudes cicatrizantes de folhagens e da água isenta de qualquer poluição, para apressar o regresso à imersão social na sua tribo. Na época, esse ritual me soava estranho, mas hoje me parece muito salutar por ser mais próximo dum viver em perfeito equilíbrio com a natureza.

Figura 3- Uma baixa do Catofe delimitada por inselbergs graníticos (Autor: Albano Faustino).

Figura 4- Inselbergs de granito entremeados por uma baixa verdejante do rio Catofe (Autor: Albano Faustino).

     Principalmente, no início da estação das chuvas a savana era pródiga em flores e frutos silvestres. Na minha memória guardo imagens de orquídeas e gladíolos, mas também outras flores cujos nomes transcendem os meus escassos conhecimentos botânicos. Entre os frutos silvestres, destaco as lachapas, maboques, romãs e tomates capuchos (cassussua), sendo o sabor dos dois últimos o mais apreciado por mim.
     Na estação seca do cacimbo os indígenas tinham o hábito contraproducente de realizar queimadas do capim seco para afugentar os animais silvestres e facilitar a sua caça de arco e flecha – zagaia. Após essas queimadas, com o advento das primeiras chuvas, brotava espontaneamente o tortulho ou cogumelo comestível que era cozinhado e saboreado em grandes paneladas.

Figura 5- Flores diversas geradas pela natureza da savana do Catofe (Autor: Albano Faustino).

Figura 6- Maboqueiro e maboques (Fonte: pt.slideshare.net).

Figura 7- Lachapas (fotos 1 e 2) e romãs (foto 3) (Autor: Albano Faustino).

Figura 8- Tomate capucho ou cassussua (Fontes: Albano Faustino; pt.slideshare.net).

     Um grande abraço do
Kabiá-Kabiaka.

GENTE DO CORAÇÃO REPARTIDO – CAP. I

À LAIA DE PREÂMBULO

Vicente Teixeira de Matos

 Sempre desejei escrever a estória – humildemente heróica – das mulheres e dos homens e da sua descendência – açorianos e açor–angolanos sofredores – que espalhados pelo “mato” angolano gravaram a duras penas e saudades margens nítidas da sua pequena terra de origem, os Açores, a esmagadora maioria proveniente  da ilha de São Jorge, contribuindo – sem sequer o intuírem, para caboucarem uma grande, generosa e próspera nação – Angola...

Figura 1- Mapa dos Açores mais antigo, existente nos dias de hoje. Na legenda em latim pode ler-se: “Estas ilhas foram percorridas com a maior diligencia, e com todo o cuidado as descreveu o português Luís Teixeira, cosmógrafo da Majestade Real. Ano de nascimento de Cristo de 1584”. (Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Azores_old_map.jpg#mw-jump-to-license).

Choquei a almejada estória com amor, durante anos e anos, deixando-me chegar aos oitenta bem puxados... Porém, sem principiar, nunca se chega ao fim...

Primeiro, socorri-me dos apontamentos, alembranças, causos, verdades “sob o manto diáfano da fantasia", escritos pelo meu chegado amigo e compadre de muitos anos e andanças – Valério Mateus (heterómino de Vicente Matos). Mais: Boletins Oficiais de Angola, Estatutos da Cooperativa Agropecuária “A Açoreana", relatórios anuais, exposições escritas e muita memória oral. Contribuições de muitos apanhados nas malhas do tempo e da saudade...

Figura 5- Jornalista Dutra Faria da ANI.

Também, recorri à contribuição do jornalista Dutra Faria, um dos três fundadores e diretor da ANI (Agência de Notícias e Informação), ou seja, as suas palestras nas Casas dos Açores do Rio de Janeiro e de Lisboa, suas crónicas no Diário Insular, de Angra do Heroísmo, de 1954, 1958, 1961 e posteriores; foi o responsável pelo crisma da “Décima Ilha dos Açores”, aquelas singelas mas sugestivas imagens açorianas confirmadas por outros visitantes, ilhéus ou não e até estrangeiros.

Passados mais de meio e de um quarto de século, do nascer e de se esfuma daquela singela utopia. Para mim, ultrapassados os oitenta – “contas e bordão" – são horas de começar!... “Em nome de Deus” começo!...



quinta-feira, abril 29, 2021

segunda-feira, abril 26, 2021

A MINHA SAVANA - Parte 1/5

Pouca gente sabe que a palavra savana é de origem brasileira, dos índios caraíbas que a pronunciavam sabana e tinham uma ideia bem precisa quanto à sua aplicação a um tipo específico de paisagem. Antes da pesquisa que realizei, para tomar balanço e escrever este primeiro capítulo do livro que publicarei com o título “O Menino na Savana: crónicas rebeldes da décima ilha”, eu também nada sabia sobre a origem etimológica da palavra savana que encerra para mim um significado quase místico.

Mas, antes de ir à definição de savana, eu gostaria de divagar um pouco sobre os caraíbas. Eles são um povo da matriz tupi e a sua designação significa “Sábio” ou “Inteligente” (do tupi kara’ib), certamente, porque essa qualidade lhes era atribuída pelas etnias circunvizinhas da mesma matriz étnica. Na época da colonização europeia da América, o povo caraíba habitava o norte e nordeste da América do Sul e várias ilhas da América Central, cujo mar passou a chamar-se pelos primeiros navegadores europeus de “Mar do Caribe”, exatamente, por causa do nome dos indígenas da região. No Brasil, os caraíbas dominavam a Amazônia e eram temidos por praticarem a antropofagia. Aliás, no seu livro “O Povo Brasileiro” o sociólogo e etnólogo Darcy Ribeiro explica que o antropofagismo de algumas tribos tupi não era um mero ato para suprir carências alimentares, por isso, usa a expressão “antropofagia cultural” e refere: “O caráter cultural e coparticipado dessas cerimônias tornava quase imperativo capturar os guerreiros que seriam sacrificados dentro do próprio grupo tupi. Somente estes – por compartilhar do mesmo conjunto de valores – desempenhavam à perfeição o papel que lhes era prescrito: de guerreiro altivo, que dialogava soberbamente com seu matador e com aqueles que iriam devorá-lo. Comprova essa dinâmica o texto de Hans Staden, que três vezes foi levado a cerimônias de antropofagia e três vezes os índios se recusaram a comê-lo, porque chorava e se sujava, pedindo clemência. Não se comia um covarde.”  Azar do mui corajoso Dom Pedro Fernandes Sardinha, o primeiro bispo do Brasil, que foi devorado pelos caetés ou tupinambás na costa de Alagoas após um naufrágio, no dia 16 de julho de 1556; pelos vistos, esqueceu-se de imitar Hans Staden, não chorou e como naquele tempo também era válido entre os tupi o velho ditado: “quem não chora, não mama”, se ele tivesse chorado, os índios concerteza teriam lhe dado uma bela índia toda “turbinada” para ele extrair uma saborosa iguaria tropical, em vez de virar repasto dos silvícolas. 

Os caraíbas foram os primeiros indígenas das Américas a terem contato com os navegadores espanhóis das naus de Cristóvão Colombo, em 1492, e desde logo passaram a ser escravizados para trabalharem nas colônias espanholas que se fundavam na América Central e do Norte. Aliás, no regresso da sua primeira viagem às suas Índias Ocidentais, Cristóvão Colombo levou 509 escravos caraíbas que foram vendidos em Sevilha em 1495. Assim, não é correta a acusação que é feita aos portugueses de terem começado o negócio de escravos de e para o continente americano. A etnia caraíba praticamente foi dizimada, porque as suas gentes morreram aos milhares no avanço da colonização, pelas guerras de ocupação, pela escravatura e por não possuírem imunidade contra as doenças que os europeus trouxeram.

savana é por excelência uma região plana, onde a vegetação é constituída essencialmente por gramíneas, adornadas por árvores esparsas de pequeno porte e por arbustos isolados ou em pequenos grupos. Assim, por definição, a savana é uma zona de transição entre a floresta e a pradaria. Existem vários tipos de savana, referindo-se a bibliografia especializada a 5 tipos principais:

1. Savanas tropicais e subtropicais, em latitudes tropicais e subtropicais, caracterizadas por duas estações – uma quente e seca e outra chuvosa –, solo fértil, poucas árvores e  grande diversidade de mamíferos, pássaros e insetos, podendo até apresentar escassez de água (semiáridas).

2. Savanas temperadas, em latitudes médias, caracterizadas por possuírem um clima de verão mais úmido e invernos mais secos, além de serem semiáridas (água escassa), têm invernos frios, uma estação temperada e uma mais quente, solo fértil, vegetação essencialmente de gramíneas e os animais incluem mamíferos, pássaros, répteis e insetos.

3. Savanas mediterrâneas, em regiões com clima mediterrâneo, sendo semiáridas, com solo pobre e vegetação arbustiva perene e pequenas árvores.

4. Savanas pantanosas, em regiões tropicais e subtropicais, que constituem ecossistemas localizados, com frequentes inundações, com muita umidade, temperatura morna e solo rico.

5. Savanas montanhosas que se encontram em altitudes elevadas, em zonas alpinas e subalpinas, das diferentes regiões do planeta.

Por tudo o que foi escrito antes, posso assegurar que a minha savana é especial, porque não pode ser classificada num só dos cinco tipos mencionados e tem um povo bem diferente dos pais do termo “savana” – os caraíbas –  que os europeus encontraram no novo mundo, no século XV.

Realmente, a minha savana está numa região tropical, a cerca de 11º de latitude Sul, 10º-15º de longitude Este e a 1220m de altitude, sensivelmente no mesmo paralelo de Aracaju, a capital do Estado do Sergipe, no Brasil. Não é nada semiárida, antes, tem abundância de água, já que no meio dela passa um rio caudaloso e perene, o rio Catofe. Ela fica verdejante nove meses por ano, de setembro a maio/junho, durante a estação das chuvas, e tem a estação seca ou cacimbo de junho a agosto/setembro.

Durante a estação das chuvas, chove copiosamente no final da tarde ao ritmo de grandes trovoadas. Grandes inselbergs – monólitos ou formações rochosas isoladas de granito bem sólido – elevam-se de 20 a 150 metros da sua base e delimitam as numerosas “baixas” – planícies – do rio Catofe, onde o capim viceja prenhe a clamar pelos tempos da sua maior utilidade que foi a alimentação das 70.000 cabeças de gado leiteiro, dos idos anos de prosperidade da colonização açoriana que atingiu o auge na primeira metade da década de 1970. Nela o solo é rico, como bem testemunhou a agricultura do milho e das forragens praticada pelos colonos açorianos, após o “desbravamento” da terra que incluía o desmatamento sustentável e a divisão do terreno em lotes para a rotação das culturas e a alimentação do gado.

Figura 1- Foto aérea, a 24,37km de altura, capturada com o programa Google Earth, onde se destaca a planície verdejante que margina o rio Catofe, separada em várias “baixas” pelos inselbergs de granito em cor castanha.

Figura 2- Mapa da região central da savana do Catofe digitalizado e recuperado a partir de uma cópia heliográfica bem antiga; no mapa original já estavam registadas as áreas de concessão aos primeiros colonos açorianos que foram paulatinamente desbravando e povoando a savana às margens do rio Catofe, tais como João de Oliveira, Emílio Dias, Vicente Matos, José Leal, João Bettencourt, João Faustino da Silveira, João de Matos, António Alves e João da Luz.

Um grande abraço do

Kabiá-Kabiaka.


sábado, abril 24, 2021

PROJETO DA CAPA


Pelo menos, o projeto da capa do livro "GENTE DO CORAÇÃO REPARTIDO: entre os Açores, Angola e o Mundo" já foi feito, conforme a vontade do autor principal Vicente Teixeira de Matos.

PRIMEIRO HAVANA

 O meu primeiro Havana,

pela brisa serena...

Aquele que dura toda a semana...

Atitude insana, muito insana!


quarta-feira, abril 21, 2021

O "NOSSO REITOR"

Os rapazes e as moças que passaram pelo velho Liceu de Angra nos bons anos trinta (1930-1940), percebem perfeitamente a quem me refiro: ao Homem singular e encantador, que acaba de falecer em Lisboa aos 97 anos (até nisso fora do vulgar) – o Dr. Joaquim Moniz de Sá Corte Real e Amaral.



Figura 1– O Dr. “Corte-Real” (28/08/1889-15/08/1987), como era normalmente designado. Ao centro, com as comendas e homenagens com que foi agraciado pelos brilhantes serviços públicos prestados – Cavaleiro da Ordem Militar de Avis (1925), Comendador da Ordem Militar de Cristo (1934), Comendador da Ordem de Benemerência (1940), Grão-Oficial da Ordem Militar de Cristo (1941) e Comendador da Ordem de Instrução Pública (1959).

Vários dos seus alunos e colegas escreveram já sobre Ele, evidenciando a sua  vida de pedagogo,  de político, de homem bom, pleno de verve, penache e sabedoria, com que enfrentou os bons e os maus momentos que lhe reservou a sua longa vida.

Não fosse a forma ímpar como dele recebi influência perdurável – já lá vão quase cinquenta anos – a qual me levou a um destino muito diverso dos meus colegas e amigos de então, mais valia hoje calar-me, curvando-me reverente perante a sua memória inolvidável

De 1932 a 1938, eu e os meus companheiros de caminho, habituámo-nos a ver entrar no velho Convento de São Francisco o “Nosso Reitor”, figura imponente,  revestida de sobretudo azul, polainitos, chapéu à diplomata,  emoldurando uma cara de “lua cheia", bigode à “adolphe menjou”, e um fino sorriso crítico de quem conhecia os homens e a sua história, que era capaz de compreender e desculpar – sem quebra do velho bom respeitinho – os pecadilhos da “malta"! Como acessório indispensável a célebre bengalinha de castão de prata que, sem nada ter de agressiva, dominava as veleidades e tentativas de greve académica,  em dias lembrados!

Da malta desse tempo, devo ser talvez o mais insuspeito para recordar a equanimidade do “Nosso Reitor", pois sofri por duas vezes as sanções morigeradoras por ele aplicadas, por bem de domar a minha precoce rebeldia: no meu 4º. Ano, transitava na rua Rio de Janeiro, com o colega Lopes Gomes, ao cruzar com o Dr. Feliciano Ramos não tirei a minha boina à sua passagem como fizera o companheiro. Bem aleguei não ter enxergado o Mestre, do outro lado da rua, mas perante  a sua queixa na Reitoria, a minha quase lesa-majestade custou-me três dias de expulsão do Liceu. No ano seguinte, perante uma altercação nos corredores do Liceu com o Sr. Lima – o bondoso e paciente Sr. Lima – presenciada pelo Dr. Pato François, que obrigou o Sr. Lima a participar na Reitoria. Como repetente em suspeitas façanhas de rebeldia, custou-me pena igual à do ano anterior. Mas disso – talvez porque aspirasse a uns feriados intercalares – nunca por nunca guardei qualquer rancor aos intervenientes,  talvez com ténue excepção para o Dr. Feliciano Ramos que, apesar de sumidade em literatura portuguesa, de facto, aos nossos olhos irreverentes, era um grande chato e senhor de um temperamento quesilento que não facilitava, a um jorgense vulcânico, “assaluto e malcriado" , “catar-lhe cortesias"! O que de resto não acontecia com o “Nosso Reitor”, que facilmente cativava os rebeldes mais empedernidos!

Figura 2– Claustro do Convento de São Francisco, onde funcionou o Liceu Nacional de Angra do Heroísmo desde a sua criação em 20/09/1844, no contexto da reforma educativa do governo Costa Cabral, até à transferência em 09/10/1969 para as instalações atuais construídas de raiz, sob a gestão do ministro da educação  Prof. Dr. José Hermano Saraiva no governo Marcello Caetano. 

Se não erro, o Dr. Corte Real e Amaral só foi nosso professor  - História  e Geografia – nos 5º. e 6º. anos; mas as suas lições,  não fazendo esquecer as do saudoso Dr. Duque Vieira, permitiram-nos conhecer uma forma diferente de abordar a História e as estórias subjacentes. As suas palestras no alto da Memória ou deambulando pelos redutos do Monte Brasil,  se não assumiam tons épicos que não estavam no seu feitio, eram  vivas e excitantes, tanto para os elementos masculinos como femininos dos seus fascinados ouvintes. “Vejam bem meninos!...” E, do alto da Memória desbobinavam os Moinhos e a Casa do Capitão,  donde saíram em tempos idos os Cortes Reais para as brumas do Ocidente, alguns para não  mais voltarem... Descia a Rua da Sé a figura apaixonante e apaixonada de Violante... Assomava às ameias do Castelinho a figura do incorruptível Ciprião... No Monte Brasil assistíamos, como de palanque, à entrada na Baía de Angra de naus e galeões imperiais, ajoujados de riquezas e especiarias, tripulados por escassos e rudes marinheiros, olhos esbugalhados pelas cousas nunca até então vistas, marcados por cicatrizes de piratas, rijos ventos e mares profundos e implacáveis...

Porém o que me levou a este canhestro desfiar de reverente lembrança, foram três iniciativas do Dr. Corte Real, que me marcaram para a vida adulta: a realização anual no Liceu da Semana do Ultramar, a existência da Sala do Ultramar recoberta de recordações por ele recolhidas em Angola, e as suas palestras sobre o Ultramar que traduziam a sua experiência como oficial miliciano em Angola, onde prestara serviço na cidade do Huambo (Nova Lisboa), criação do General Norton de Matos,  génio ultramarino frustrado pela politiquice da sua época e democrata de raiz, hoje propositadamente esquecido. O Dr. Corte Real servira no chamado quartel da Aviação,  onde – mal sabia eu então – seria tropa em 1941, no 1º. curso de milicianos da 1ª. Escola de Quadros Militares que se fundou em Angola.

O “Nosso Reitor “ não seria um ultramarino ferrenho – se não me engano nunca mais voltou ao Ultramar – mas a sua experiência castrense em Angola e a sua consciência de cultor da História pátria,  alertavam-no – sem pieguices ou oportunismo – para o presente e o futuro do seu País e dos Povos que o integravam.

E, assim, o Dr. Corte Real e Amaral,  a par com o jorgense Coronel António Silveira Lopes,  instalaram em mim, primeiro a curiosidade e depois o entusiasmo e o amor pelo Ultramar Português,  e me levaram a transmiti-los a meus pais e irmãos,  que lá abalaram para Angola em 1937 à procura de novos horizontes e terras largas que escasseavam na nossa Ilha, e para onde segui em 1939, num desejo premente de colaborar, dentro da minha modéstia,  nessa exaltante tarefa de construir um mundo novo.

Por lá gastei a mocidade durante trinta e seis anos (excepção de escassos quatro meses), e se de lá voltei escasso de bens materiais,  acompanha-me uma rica vivência que por nada trocaria. Continuo a considerar ter sido um privilégio a minha modesta contribuição numa terra e num período histórico da nossa Pátria que – ultrapassados regimes e ideologias – amainados os ventos, o futuro fará a justiça merecida.

“Quinto Império" (Império do Divino Espírito?) várias vezes adiado, não um exclusivo de Portugal e da nossa gente, mas do qual o nosso Povo foi e pode continuar a ser pioneiro!...

Assim, o que descrevo basta para justificar a modesta mas sincera homenagem que aqui presto ao Homem que foi o Dr. Joaquim Moniz de Sá Corte Real e Amaral – o “NOSSO REITOR".

ANGRA, Porto de Naus e Cidade Encantada de Impérios,  setembro de 1987.

VICENTE DE MATOS.

sexta-feira, abril 02, 2021

quinta-feira, julho 09, 2020

EU E OUTRO...



                    CRIANÇA, era outro...
                    Naquele em que me tornei
                    Cresci e esqueci.
Tenho de meu, agora, um silêncio, uma lei.
                    Ganhei ou perdi?
                                       Fernando Pessoa





terça-feira, janeiro 29, 2019

UM LONGÍNQUO NATAL AFRICANO

Meu conto de Natal, para as minhas netas – com o maior Amor do mundo – para um dia lembrarem também

Hoje, 29/01/2019, faz três anos que o meu Kilamba Vicente se despediu desta vida terrena e nasceu para um novo mundo. Natal vem de “Natalis Solis Invictus”, isto é, “Nascimento do Sol Invencível”, celebrado  pelos pagãos romanos no alvor do dia 25 de dezembro, que os cristãos adotaram ulteriormente para comemorar o nascimento de Jesus “o Cristo”. 
Assim, nada melhor na presente data do que publicar um conto de Natal do Kilamba Vicente. Decretou Tavares de Almeida (1977): Os grandes Mortos têm essa qualidade de vida, de permanência que os torna companheiros e oráculos pelo mistério da sua intrínseca contemporaneidade”. Assim é hoje, ainda para mim, o meu Kilamba Vicente, que enfrentou todos os obstáculos da vida como um “casca grossa com o coração de manteiga”– como o classificou o saudoso Sr. João Bettencourt – aliás, como eu sempre almejei ser... Recordo-o SEMPRE com alegria, meu Pai, porque só devemos chorar os nossos mortos se somos indignos do seu exemplo!
O conto natalino foi escrito em 15/12/1995 e publicado em 19/01/1996, no jornal Correio de São Jorge. É um vislumbre de impressões muito pessoais do Natal ocorrido seis meses após a chegada a Angola de um jovem de dezanove anos, imerso numa realidade bem diversa das Ilhas do Mar Poente, onde nasceu e foi criado.
Figura 1-Uma visão do artigo original.
Com a palavra, 
Vicente Teixeira de Matos.
É já privilégio da minha idade, lembrar o passado; e referente à quadra festiva, alguns Natais que já vivi.
Hoje venho relembrar um Natal diferente, dum amigo muito chegado: corria o ano de 1939, que, para nós, neste final de milénio, de todas as maravilhas, violências, misérias e incerteza, cheira a poeira dos séculos! Na Europa, e logo de seguida no resto do mundo, os homens ensandecidos batiam-se ferozmente, em nome do poder e da ganância, do racismo e da liberdade. Em Angola, terra onde flutuava a bandeira das quinas – era então um oásis de paz e de abundância, à parte a falta de artigos importados – como combustíveis, pneus, bacalhau, azeite e outros mimos europeus que, não faziam falta ao povo comum. A tradicional abundância tropical, a todos provia – cereais, caça, frutas, peixe; eram abundantes e saborosos.
O bizarro personagem deste escrito, era um jovem açoriano de S. Jorge, escassos seis meses de estadia em Angola, 19 anos acabados de fazer, sujeito ao duro choque da mudança, de S. Jorge e de Angra do Heroísmo do tempo de aulas, para o abismo de diferenças culturais e paisagísticas – do mato angolano daquela época! Que, se não conseguiam quebrar o entusiasmo e o ânimo, davam pelo menos para espantar e moer qualquer novato.
Figura 2-“bizarro personagem”do conto com 18 anos, quando rumou a Angola, e nos seus pletóricos noventa e cinco (95) anos.
A região em que se encontrava o nosso açoriano era uma área de transição entre o Planalto Central do Huambo e o Planalto da Huíla (Sul), meio caminhos dos 440 km, entre Huambo (Nova Lisboa) e Lubango (Sá da Bandeira), onde principiam a aparecer as tribos de pastores, que povoam todo o Sul de Angola, com as suas culturas sui-generis.
Figura 3-A cidade de Angra do Heroísmo, com o Monte Brasil, ao fundo, na Ilha Terceira.
A povoação onde o nosso jovem assentou arraiais chamava-se Tchicomba-a-Velha, antigo posto militar, suplantada por Tchicomba-a-Nova, a uns 20 km a norte. A velha povoação era formada por duas casas comerciais, construções tipo comboio, de pau a pique barradas de argila caiada de branco, sendo os comerciantes os únicos europeus, população agora acrescida com o jovem, que ali viera parar a fim de gerir a fábrica de manteiga, sediada numa das casas, manteiga obtida com o leite adquirido aos pastores nativos. Paredes meias, ficava a aldeia nativa, onde pontificava o Soba Grande José Tchibinda, senhor de dez mulheres, bastos filhos, filhas e netos, e possuidor da mais lustrosa manada de vacas nativas, que o moço jorgense nunca julgaria vir encontrar naquele sertão. Para lá do rio, ao fundo da planície, as ruínas do fortim, paredes de tijolos cozidos ao sol, símbolo duma época passada.
Figura 4-Uma família de pastores Mumuíla, Huíla, Sul de Angola (Fonte: pinterest.com).
Depois duma estadia de escassos dois meses, aproximava-se o Natal – o primeiro Natal africano do nosso jovem açoriano – e devido à dificuldade de comunicações e impossibilidade de parar a fábrica, não via qualquer possibilidade de o passar junto dos pais e irmãos, que viviam nos arredores de Nova Lisboa, numa fazenda agrícola, a 230 km. O seu anfitrião – enérgico beirão, que viera também para Angola com 18 anos – iria festejar o Natal com a família que vivia, que vivia em Sá da Bandeira, por motivos dos estudos dos filhos. O vizinho – um rijo casmurro transmontano – iria também passá-lo com conterrâneos, longe dali.
Habituado aos Natais simples e familiares da sua infância jorgense, ou aos Natais alegres da Angra festeira e encantada dos anos trinta, pois nessa época os estudantes de fora não iam passar o Natal a casa, e por isso as Missas do Galo na Sé Catedral e as festas tinham o perfume da mocidade.
Figura 5-A Sé Catedral de Angra do Heroísmo, Ilha Terceira, Açores.
Agora, sozinho naquela casa , não via perspectivas alegres e festivas para passar o Natal, rodeado de nativos, de que mal conhecia os costumes e as reações. Com a agravante, que o cozinheiro da casa, (em Angola eram os homens que prestavam serviços de cozinheiros e as mulheres de lavadeiras) abandonara o serviço, ausentando-se da região, sem dizer água vai; e assim o nosso jovem obrigava-se a recordar o que faziam as mulheres da sua família, e procurar transmitir ao jovem ajudante de cozinheiro, umas lições (?) de amassar e cozer pão, cozinhar um cozido ou uns bifes de caça, coar café, e, como havia abundância de leite, apresentar uma travessa de arroz doce!
Chegada a véspera do Natal, o nosso açoriano, qual aprendiz de feiticeiro, armou-se da coragem inevitável, aumentou para dois os ajudantes, prepararam uma cozedura de pão – que ficou mais parecia bolo do Pico para uso de marinheiro – providenciaram um cozido de pechelim (um parente do bacalhau dos mares do Sul, pescado e seco em Moçamedes), não faltou arroz doce e um café fortíssimo, capaz de acordar um morto; estava pronto aquele banquete de Natal! O almoço! Ficou destinado um churrasco de galinha com piri-piri, no tempo em que uma pequena galinha gentia custava 2$50!
O nosso aprendiz de angolano ceou, com calma e alguma dificuldade, como se calcula, e depois foi deitar-se debaixo do mosquiteiro, única defesa contra os mosquitos transmissores do paludismo e da biliosa, da qual poucos escapavam naquela época. Chovera e trovejara durante o dia, mais um sinal de alegria, penhor de pastos fartos para o gado e duma prometedora sementeira. A noite estava límpida e a lua inundava a selva, as casas e os terreiros, os bichos e as gentes, com um claro luar que nunca vira igual!
Na aldeia, o Soba Grande mandara matar um grande garrote (novilho), que, com algumas peças de caça, prodigalizava churrasco para todos, pirão abundante, tudo regado com bingundo (hidromel), que se bem fermentado, chegava a embriagar! Ao mesmo tempo, soaram os tambores na tépida noite tropical, com danças e cantares na língua nativa, alegórica maneira daquele antigo povo de pastores – cristianizados ou não – saudarem com alegria não fingida a Noite diferente, na qual nascera um Menino para trazer a todos os homens a Paz e a Boa Nova!
Segundo calculam, o moço açoriano só pregou olho ao amanhecer, mas dessa estranha e solitária noite de Natal, retirou várias lições que acabou por recordar pela vida fora:
A-   O Doce Jesus, que naquela noite era lembrado por todo o Mundo, na Europa em guerra ou na abundância de luzes e banquetes, também nascera para aqueles humildes pastores africanos – sofridos e alegres – naquela mágica noite de luar!
B-  A partir daquela noite, o açoriano saudoso das suas ilhas, convertera-se àquela Terra larga e prometedora e, passaria a respeitar aquele Povo, de cultura tão diferente do seu, mas tão próximo da sua humanidade!
C-  A Noite de Natal, qualquer que seja como a iria passar no futuro, seria acima de tudo um estado de alma – uma Noite Feliz!
Passados meses, pela proibição de compra de leite aos nativos, o nosso açoriano deixou Tchicomba-a-Velha, para não mais lá voltar.
Contudo, os outros trinta e quatro Natais que passaria em Angola, foram passados primeiro no Huambo junto dos pais e irmãos, depois em S. Jorge do Catofe – a Décima Ilha dos Açores, como a crismou o saudoso jornalista terceirense Dr. Dutra Faria – junto com a sua mulher e filhos, o primeiro deles nascido numa inesquecível Noite de Natal. Qualquer daqueles Natais teve o seu carisma, sem fazer esquecer o primeiro Natal de angolano.
Hoje, retornado há vinte anos aos Açores, obrigado pela ignorância, cobiça e irresponsabilidade dos homens, o moço açoriano de então, os cabelos já completamente brancos, continua a sonhar com aqueles Natais dos trópicos, de paz e doçura singulares.
Será que a Paz voltará um dia àquela Terra e àquele Povo martirizados?
“Glória a Deus nas alturas e Paz na terra aos homens de boa vontade”.
  
A terminar, um grande abraço do 
Kabiá-Kabiaka.
Facebook: Lúcio Kabiaka
Twitter: @LucioKabiaka