domingo, agosto 19, 2007
DUZENTOS E FEITIÇARIAS
Estava um dia na frente da loja do Kilamba[1] Vicente, cerca das seis da tarde, a contemplar o infinito das baixas que se vergavam à mística do pôr-do-sol divinal e iam além do rio a desfazer-se, para a esquerda, no morro da Sanzala[2] do Hombo, e, para a direita, a esparramarem-se pelo vale fluvial que serpenteava entre os morros de granito, quando vi vir na minha direção no seu passo seguro e cadenciado o Kimbanda[3] Duzentos, detentor de um porte de sékulu[4] respeitável, apesar de atarracado nos seus 1,60m, coroados majestosamente por um chapéu de feltro de abas cortadas, barba varonil grisalha como convém a um régulo africano, bem calçado por botas de cano de borracha, próprias para o trabalho na chunda[5], cajado numa mão a marcar sobre o chão endurecido pelo cacimbo[6] a passada calma, mas firme, e a catana na outra, instrumento de trabalho e defesa no caminho de casa, esta isolada junto às Pedras do Quiquerengue, a cerca de 5km da povoação dos brancos (clicar sobre o mapa da Região Central do Katofe, acima).
O Kimbanda Duzentos era uma personalidade bastante popular nas paragens mais recônditas da savana do Katofe, quer entre os mbundu[7], quer entre os kindele[8]. Ele era um funcionário dedicado no serviço do gado do Sr. Kimbaça – Emílio Dias – desde que chegara à savana catofeira, proveniente da Sanga, um Posto Administrativo próximo do Katofe, uns 60 km ao sul, indo pela estrada velha de terra batida para Nova Lisboa - Huambo, que passava pelo Bailundo e não pelo Alto Hama, como a estrada nova alcatroada.
Um esboço do Kimbanda Duzentos.
O Mais-Velho Duzentos, como eu gostava de chamá-lo, era muito respeitador de todos e sempre achei que as suas artes de Kimbanda passavam mais pela elaboração de milongos[9] e evocação dos espíritos dos antepassados para curar as pessoas que o consultavam e não tanto por feitiçarias que trouxessem desgraça a alguém. Eu gostava muito de questioná-lo, quando já era estudante do Liceu General Norton de Matos, em Nova Lisboa, e ficava a trabalhar na loja durante as férias, onde ele entrava no final do serviço para tomar uns tragos de vinho tinto do Puto[10], de vez em quando, já que na loja do patrão Vicente era puro da uva, sim senhor, não era bacaxis[11] nem Bangasumo baptizado[12].
A conversa discorria, mais ou menos, assim:
- Oh, Duzentos nunca mais és promovido, quando é que passas a Duzentos e Cinquenta? - provocava eu.
- Não, minino. Eu vou morrer mesmo Duzentos, senão dá muita confusão, não é bom trocar de nome, pode dar azar - respondia o Kimbanda.
- O que é isso de azar? É feitiço? Feitiço não existe... Só pessoa que não estuda é que acredita em feitiço. Já viste algum branco que acredita em feitiço? - eu provocava, novamente.
- Ele ripostava: Aka[13], minino! Branco é que tem mais feitiço! Branco tem feitiço demais, yá vika[14]! Vê só, carro tem muito feitiço, se vai no estrada na frente de carro é capaz de perder a vida! Aqui, a catana[15] – ele passava suavemente a ponta do polegar sobre o fio da catana que trazia sempre com ele – a catana, vê só, tem muito feitiço. Quem fez isso tudo que pode tirar a vida co dipressa? Foi o branco! É mesmo, também tem muito feitiço, mesmo, branco é quem tem mais feitiço do que preto... Tudo que pode tirar a vida tem feitiço! Carro tem feitiço... Tractor tem feitiço... Catana tem feitiço... Espingarda tem feitiço...
- Então, quer dizer que quando tu fazes feitiço é para tirar a vida de alguém? É por isso que nunca mais vais chegar a Duzentos e Cinqüenta! - instiguei assim ele a falar mais.
- Aka, minino, não fala isso... Minino tem muito esperto... Eu quer dizer que feitiço é vida, eu não quer tirar vida de ninguém, não, mesmo. - retornou ele, rindo muito.
- Toma cuidado com esses teus feitiços e milongos, porque se tu me colocares feitiço e eu ficar mal, então, eu vou te queixar no Soba da Banza, o Soba Sebastião, e ele vai te levar preso lá na Administração da Quibala. - eu acrescentava uma nova provocação.
- Não, minino Lúcio, preto não pode fazer feitiço para branco. É branco só que faz feitiço para branco. - disse ele, para término de conversa.
Naquele dia, eu fiquei a entender que para o Mais-Velho Duzentos a feitiçaria era um sinônimo de tecnologia e que os feitiços que ele fazia eram racistas, não podiam atingir os brancos. Se ele não me convenceu muito quanto à sua definição de feitiço, pelo menos, deixou-me bem tranqüilo quanto às conseqüências dos seus trabalhos esotéricos.
A conversa discorria, mais ou menos, assim:
- Oh, Duzentos nunca mais és promovido, quando é que passas a Duzentos e Cinquenta? - provocava eu.
- Não, minino. Eu vou morrer mesmo Duzentos, senão dá muita confusão, não é bom trocar de nome, pode dar azar - respondia o Kimbanda.
- O que é isso de azar? É feitiço? Feitiço não existe... Só pessoa que não estuda é que acredita em feitiço. Já viste algum branco que acredita em feitiço? - eu provocava, novamente.
- Ele ripostava: Aka[13], minino! Branco é que tem mais feitiço! Branco tem feitiço demais, yá vika[14]! Vê só, carro tem muito feitiço, se vai no estrada na frente de carro é capaz de perder a vida! Aqui, a catana[15] – ele passava suavemente a ponta do polegar sobre o fio da catana que trazia sempre com ele – a catana, vê só, tem muito feitiço. Quem fez isso tudo que pode tirar a vida co dipressa? Foi o branco! É mesmo, também tem muito feitiço, mesmo, branco é quem tem mais feitiço do que preto... Tudo que pode tirar a vida tem feitiço! Carro tem feitiço... Tractor tem feitiço... Catana tem feitiço... Espingarda tem feitiço...
- Então, quer dizer que quando tu fazes feitiço é para tirar a vida de alguém? É por isso que nunca mais vais chegar a Duzentos e Cinqüenta! - instiguei assim ele a falar mais.
- Aka, minino, não fala isso... Minino tem muito esperto... Eu quer dizer que feitiço é vida, eu não quer tirar vida de ninguém, não, mesmo. - retornou ele, rindo muito.
- Toma cuidado com esses teus feitiços e milongos, porque se tu me colocares feitiço e eu ficar mal, então, eu vou te queixar no Soba da Banza, o Soba Sebastião, e ele vai te levar preso lá na Administração da Quibala. - eu acrescentava uma nova provocação.
- Não, minino Lúcio, preto não pode fazer feitiço para branco. É branco só que faz feitiço para branco. - disse ele, para término de conversa.
Naquele dia, eu fiquei a entender que para o Mais-Velho Duzentos a feitiçaria era um sinônimo de tecnologia e que os feitiços que ele fazia eram racistas, não podiam atingir os brancos. Se ele não me convenceu muito quanto à sua definição de feitiço, pelo menos, deixou-me bem tranqüilo quanto às conseqüências dos seus trabalhos esotéricos.
O autor nos tempos das divagações filosóficas com o Kimbanda Duzentos.
Um outro dia na loja, após uma amigável parceria de copos de tintol do Puto, o Mais-Velho Duzentos travou-se de razões com o José Lucas Candeeiro. O José Lucas Candeeiro era um funcionário bailundo[16], dos Serviços Veterinários de Angola, nascido no Longonjo, na Serra do Lépi, no Huambo, que auxiliava o Ajudante de Pecuária, ou seja, o técnico que vivia na povoação para manter o gado devidamente vacinado. O Candeeiro gostava de se abastecer diariamente de petróleo de uva, ao terminar a sua faina de vacinação, a tal ponto que nós sempre lhe perguntávamos:
- Como está o Candeeiro, já está aceso, ou apagado?
Quase sempre ele respondia: está apagado, está apagado! Vamos encher mais petróleo no Candeeiro!
Mas, voltando à discussão dos parceiros de fim de tarde, a páginas tantas, depois de terem discutido bastante em kimbundu[17], o Candeeiro resolveu encostar à parede o velho Kimbandeiro com esta:
- Olha cá senhor Duzentos, não adianta o senhor Duzentos querer me meter medo, não, eu não tenho medo do seu feitiço; o seu feitiço não pega em mim, eu não sou do teu povo! Feitiço de Kimbundu não pega em Ovimbundu!
Só nesse dia é que eu entendi que os espíritos e os feitiços africanos, além de racistas, eram também tribalistas.
[1] Kilamba – pessoa sábia.
[2] Sanzala – aldeia africana.
[3] Kimbanda – feiticeiro e curandeiro.
[4] Sékulu – velho.
[5] Chunda – curral do gado, estábulo.
[6] Cacimbo – estação seca de Angola, quando o frio se faz sentir com muita neblina durante a noite.
[7] Mbundu – homem negro.
[8] Kindele – homem branco.
[9] Milongo – remédio feito com ervas do mato.
[10] Puto – Portugal.
[11] Bacaxis – vinho de abacaxi.
[12] Bangasumo batizado – marca de vinho angolano de abacaxi, geralmente, adulterado com mistura de água.
[13] Aka – interjeição de admiração, como “puxa”.
[14] Yá vika – muito.
[15] Catana – facão de lâmina larga bastante usado em Angola para cortar mato.
[16] Bailundo – nativo de Angola da etnia Ovimbundu.
[17] Kimbundu – etnia e língua de Angola.
- Como está o Candeeiro, já está aceso, ou apagado?
Quase sempre ele respondia: está apagado, está apagado! Vamos encher mais petróleo no Candeeiro!
Mas, voltando à discussão dos parceiros de fim de tarde, a páginas tantas, depois de terem discutido bastante em kimbundu[17], o Candeeiro resolveu encostar à parede o velho Kimbandeiro com esta:
- Olha cá senhor Duzentos, não adianta o senhor Duzentos querer me meter medo, não, eu não tenho medo do seu feitiço; o seu feitiço não pega em mim, eu não sou do teu povo! Feitiço de Kimbundu não pega em Ovimbundu!
Só nesse dia é que eu entendi que os espíritos e os feitiços africanos, além de racistas, eram também tribalistas.
[1] Kilamba – pessoa sábia.
[2] Sanzala – aldeia africana.
[3] Kimbanda – feiticeiro e curandeiro.
[4] Sékulu – velho.
[5] Chunda – curral do gado, estábulo.
[6] Cacimbo – estação seca de Angola, quando o frio se faz sentir com muita neblina durante a noite.
[7] Mbundu – homem negro.
[8] Kindele – homem branco.
[9] Milongo – remédio feito com ervas do mato.
[10] Puto – Portugal.
[11] Bacaxis – vinho de abacaxi.
[12] Bangasumo batizado – marca de vinho angolano de abacaxi, geralmente, adulterado com mistura de água.
[13] Aka – interjeição de admiração, como “puxa”.
[14] Yá vika – muito.
[15] Catana – facão de lâmina larga bastante usado em Angola para cortar mato.
[16] Bailundo – nativo de Angola da etnia Ovimbundu.
[17] Kimbundu – etnia e língua de Angola.
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