- Oh Juuuustiiiiiiiiiiiiiino! Oh Juustiiiiiino! Oh Juuuusttiiiiiiiiiiiino!
- Pronto patrão! Resposta antecedida por grande assobio que só os pastores sulanos[1] sabiam dar, para conduzir o gado até à chunda[2] para a ordenha da matinal e vespertina ou em dias de vacinação e de capar garrotes.
E, logo, se ouviam os passos apressados do Justino e do filho, seguidos pela sonoridade do diálogo ameno das primeiras ordens do dia do Kota[3] Kimbaça[4] e o tilintar de baldes e bilhas, limpos de véspera, prontos a sentirem o morno escorrer do leite esguichado das tetas amaciadas por mãos calosas.
O ritual protagonizado pelo Kota Kimbaça – o Sr. Emílio Dias, um dos três primeiros povoadores europeus da savana do Katofe – e o Justino, um esguio pastor bailundo[5] que se estabeleceu no Katofe desde os primeiros anos da constituição da sociedade Oliveira & Dias – entre os primeiros povoadores João de Oliveira, André de Oliveira e Emílio Dias – era o relógio de despertador para quem morava por perto. Quantas vezes esses ruídos subterrâneos, de tão cedo que se manifestavam, pelas quatro horas da madrugada, geravam protestos de vizinhos mais sonolentos e mais afeitos ao quente dos lençóis, principalmente, quando o cacimbo se fazia presente com a sua neblina de frio cortante.
- Filho da mãe desse Velho Kimbaça tem que me acordar assim tão cedo no cacimbo para ir tirar meia dúzia de litros de leite! Era o protesto do meu irmão Paga-Fogo[6], que nas férias grandes de junho a setembro ganhava os maiores elogios dos maiores amantes açorianos das vacas leiteiras que se admiravam de ver um estudante exibir as suas vocações veterinárias, tão cedo, pelas cinco horas da madrugada, com as kinamas[7] bem enfiadas em botas de borracha de cano alto, como exigia o figurino. Já, para o sono do Kabiaka os gritos do Sr. Kimbaça soavam como um breve interlúdio musical que separava o quarto do quinto sono, este, sim, fadado a terminar lá pelas oito da matina, a correr, para abrir a loja com algum atraso.
Kimbaça foi o apelido do Sr. Emílio Dias que mais se popularizou entre os kimbundus[8], mas também me lembro de outro que tinha mais a ver com uma atividade que ele desempenhava religiosamente todos os dias, nos tempos da minha primeira infância, quando ainda não havia rede de distribuição de água no Katofe – a “água encanada”, no dizer dos açorianos. Então, o Kota Kimbaça assumia o papel de Kimbuka Mema[9] e se dirigia acompanhado por algum servente à fonte de águas cristalinas mais próximas, com um barril que rolava vagarosamente pelo caminho, puxado por um arame com as extremidades presas a dois eixos de um lado e outro do barril.
Nos primeiros tempos da colonização açoriana da savana do Katofe, o Sr. Emílio Dias era conhecido por grandes qualidades que transcendiam em muito o seu perfil corpulento ou o significado dos seus apelidos kimbundus. Era dotado de uma força que o levava sempre a executar primeiro as tarefas para mostrar aos funcionários africanos como se devia fazer. E era digno de ver os circunstantes com olhares arregalados de admiração quando o Kota Kimbaça avançava sobre uma gamela cheia de sal, feita em meio tronco de árvore, para desenterrá-la da lama, no tempo da estação das chuvas; sozinho, abraçava aquela gamela, sem deixar cair o sal, e prontamente a desenterrava e a colocava num lugar mais seco para repasto mais tranqüilo das suas vaquinhas amadas. Também, em dia de capar garrotes era vê-lo sozinho enfiar dois dedos nas ventas do bicho e com a outra mão dar uma torção nos cornos para que o animal se estatelasse no chão em mugidos sufocados. Quando chegava a vez dos kimbundus, estes rodeavam o garrote repetidamente, com incitações de “Kwata ku mutu! Kwata ku mutu! kwata ku mutu!”[10], orientados pelos gritos de incitamento e orientações do Kota Kimbaça, já, esfalfado em sucessivas exemplificações, até que, após alguma correria, o bicho era rendido. Diziam as boas línguas que a sua força, nos seus melhores tempos, era suficiente para fazê-lo abraçar sem vacilações um tambor de duzentos litros de óleo de palma e colocá-lo sobre a carroceria de uma carrinha[11]. Quanto à superior capacidade de domar vacas e bois bravos, eu sou uma testemunha viva e fiel. Um dia, assistia à ordenha, empoleirado na cerca do curral onde mais tarde foi construído o estábulo do próprio Kota Kimbaça, resolvi descer para brincar com o vitelo de uma vaca meio gentia de nome Humpata. Em dado momento, a Humpata lá achou que eu não tratei bem a sua cria e, para minha surpresa e gritaria, resolveu pegar-me contra a cerca; valeu-me a presença do Kota Kimbaça que munido do banco da ordenha deu umas bordoadas na minha agressora. Desde esse tempo, se eu gostava pouco de vacas leiteiras, fiquei a amá-las menos, ainda, para grande desonra do aglomerado katofiano, onde vigorava a lei de que qualquer ocupação que merecesse o nome “trabalho” sempre devia passar por algum cheiro a leite e a bosta de vaca.
Figura 1 – Mapa etnográfico de Angola, conforme Ferreira Diniz.
A minha maior admiração pelo Kota Kimbaça, passava pela maneira como ele sabia dirigir como ninguém os bois que puxavam a carroça ou as alfaias agrícolas:
- Pra cá Chibante, pra lá Amante! Encosta pra canga boi!
Lá ia falando ele brandamente, de aguilhada na mão a tocar levemente o dorso dos animais. E os bois seguiam as suas ordens de imediato como se fossem conduzidos por fios elétricos.
- Oh António, traz a Velha!
- Foste tu!
A finalizar, eu sei que o Kota Kimbaça, do mundo espiritual para onde partiu, quando morava nos Estados Unidos da América, ao ver-me lembrar estas histórias, solta a sua gaitada e expressão de admiração com o seu timbre pessoal, que tantas vezes escutei no Katofe quando se sentava em ameno sunguilar[12] numa roda de colonos Katofianos:
- Iá-iá, ia-iá, iá-iá... Pópilas patrício!
Kabiá-Kabiaka.
[1] Designação dada pelos habitantes de Luanda a quem nasceu no sul de Angola.
[2] Estábulo, curral de tratamento do gado.
[3] Mais-Velho, designação dada pelos angolanos a pessoas de mais idade, mais experientes e sábias, merecedoras de admiração e respeito pelos mais novos.
[4] Gordo, pessoa de porte avantajado.
[5] Natural da região do Huambo – Angola.
[6] Apelido dado pelos indígenas ao meu irmão José Estevam da Silveira Matos.
[7] Pernas.
[8] Povos da etnia Kimbundu (ver mapa etnográfico de Angola), que ia incluía dos grupos Quibala, ao sul, a Dembos, ao norte, e de Songo, a leste, a Ngola, ao oeste.
[9] Busca-Água, por tradução literal do Kimbundu.
[10] Pega na cabeça! Pega na cabeça! Pega na cabeça!
[11] Camioneta.
[12] Conversar.