segunda-feira, julho 28, 2008

KOTA KIMBAÇA

Frequentemente, a anunciar o romper da aurora na savana do Katofe, fui acordado por pelo chamamento peculiar:

- Oh Juuuustiiiiiiiiiiiiiino! Oh Juustiiiiiino! Oh Juuuusttiiiiiiiiiiiino!

Algumas vezes, os gritos eram entremeados com expressões de apelo ao aprimoramento da alma que passava essencialmente pelo suor da labuta rotineira com as vacas leiteiras, embora sem descurar alguma referência material: “o dinheiro está fundo, vamos trabalhar!”.

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Pronto patrão! Resposta antecedida por grande assobio que só os pastores sulanos[1] sabiam dar, para conduzir o gado até à chunda[2] para a ordenha da matinal e vespertina ou em dias de vacinação e de capar garrotes.

E, logo, se ouviam os passos apressados do Justino e do filho, seguidos pela sonoridade do diálogo ameno das primeiras ordens do dia do
Kota[3] Kimbaça[4] e o tilintar de baldes e bilhas, limpos de véspera, prontos a sentirem o morno escorrer do leite esguichado das tetas amaciadas por mãos calosas.

O ritual protagonizado pelo Kota Kimbaça – o Sr. Emílio Dias, um dos três primeiros povoadores europeus da savana do Katofe – e o Justino, um esguio pastor bailundo
[5] que se estabeleceu no Katofe desde os primeiros anos da constituição da sociedade Oliveira & Dias – entre os primeiros povoadores João de Oliveira, André de Oliveira e Emílio Dias – era o relógio de despertador para quem morava por perto. Quantas vezes esses ruídos subterrâneos, de tão cedo que se manifestavam, pelas quatro horas da madrugada, geravam protestos de vizinhos mais sonolentos e mais afeitos ao quente dos lençóis, principalmente, quando o cacimbo se fazia presente com a sua neblina de frio cortante.

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Filho da mãe desse Velho Kimbaça tem que me acordar assim tão cedo no cacimbo para ir tirar meia dúzia de litros de leite! Era o protesto do meu irmão Paga-Fogo[6], que nas férias grandes de junho a setembro ganhava os maiores elogios dos maiores amantes açorianos das vacas leiteiras que se admiravam de ver um estudante exibir as suas vocações veterinárias, tão cedo, pelas cinco horas da madrugada, com as kinamas[7] bem enfiadas em botas de borracha de cano alto, como exigia o figurino. Já, para o sono do Kabiaka os gritos do Sr. Kimbaça soavam como um breve interlúdio musical que separava o quarto do quinto sono, este, sim, fadado a terminar lá pelas oito da matina, a correr, para abrir a loja com algum atraso.

Kimbaça foi o apelido do Sr. Emílio Dias que mais se popularizou entre os
kimbundus[8], mas também me lembro de outro que tinha mais a ver com uma atividade que ele desempenhava religiosamente todos os dias, nos tempos da minha primeira infância, quando ainda não havia rede de distribuição de água no Katofe – a “água encanada”, no dizer dos açorianos. Então, o Kota Kimbaça assumia o papel de Kimbuka Mema[9] e se dirigia acompanhado por algum servente à fonte de águas cristalinas mais próximas, com um barril que rolava vagarosamente pelo caminho, puxado por um arame com as extremidades presas a dois eixos de um lado e outro do barril.

Nos primeiros tempos da colonização açoriana da savana do Katofe, o Sr. Emílio Dias era conhecido por grandes qualidades que transcendiam em muito o seu perfil corpulento ou o significado dos seus apelidos kimbundus. Era dotado de uma força que o levava sempre a executar primeiro as tarefas para mostrar aos funcionários africanos como se devia fazer. E era digno de ver os circunstantes com olhares arregalados de admiração quando o Kota Kimbaça avançava sobre uma gamela cheia de sal, feita em meio tronco de árvore, para desenterrá-la da lama, no tempo da estação das chuvas; sozinho, abraçava aquela gamela, sem deixar cair o sal, e prontamente a desenterrava e a colocava num lugar mais seco para repasto mais tranqüilo das suas vaquinhas amadas. Também, em dia de capar garrotes era vê-lo sozinho enfiar dois dedos nas ventas do bicho e com a outra mão dar uma torção nos cornos para que o animal se estatelasse no chão em mugidos sufocados. Quando chegava a vez dos kimbundus, estes rodeavam o garrote repetidamente, com incitações de
“Kwata ku mutu! Kwata ku mutu! kwata ku mutu!”[10], orientados pelos gritos de incitamento e orientações do Kota Kimbaça, já, esfalfado em sucessivas exemplificações, até que, após alguma correria, o bicho era rendido. Diziam as boas línguas que a sua força, nos seus melhores tempos, era suficiente para fazê-lo abraçar sem vacilações um tambor de duzentos litros de óleo de palma e colocá-lo sobre a carroceria de uma carrinha[11]. Quanto à superior capacidade de domar vacas e bois bravos, eu sou uma testemunha viva e fiel. Um dia, assistia à ordenha, empoleirado na cerca do curral onde mais tarde foi construído o estábulo do próprio Kota Kimbaça, resolvi descer para brincar com o vitelo de uma vaca meio gentia de nome Humpata. Em dado momento, a Humpata lá achou que eu não tratei bem a sua cria e, para minha surpresa e gritaria, resolveu pegar-me contra a cerca; valeu-me a presença do Kota Kimbaça que munido do banco da ordenha deu umas bordoadas na minha agressora. Desde esse tempo, se eu gostava pouco de vacas leiteiras, fiquei a amá-las menos, ainda, para grande desonra do aglomerado katofiano, onde vigorava a lei de que qualquer ocupação que merecesse o nome “trabalho” sempre devia passar por algum cheiro a leite e a bosta de vaca.

Figura 1 – Mapa etnográfico de Angola, conforme Ferreira Diniz.

A minha maior admiração pelo Kota Kimbaça, passava pela maneira como ele sabia dirigir como ninguém os bois que puxavam a carroça ou as alfaias agrícolas:

- Pra cá Chibante, pra lá Amante! Encosta pra canga boi!

Lá ia falando ele brandamente, de aguilhada na mão a tocar levemente o dorso dos animais. E os bois seguiam as suas ordens de imediato como se fossem conduzidos por fios elétricos.

Figura 2 – Kota Kimbaça a lidar os bois na eira, para regalo dos seus pequenos admiradores: Lúcio Matos, São Dias, Idalina Dias, José Estevam Matos, Maria Ângela Dias, Linita Dias.

Kota Kimbaça também fez alguns discípulos entre os kimbundus na nobre arte de tornar sem muito esforço os animais mais bravos inclinados ao trabalho da lavoura, quiçá, um dos que são vistos na Figura 3, correspondente a uma fotografia tirada no Katofe, em julho de 2008, durante as horas matinais de cacimbo.

Figura 3- Kimbundus do Katofe com a sua junta de bois (Foto tirada em julho de 2008 pelo nosso amigo Katofiano Jorge Oliveira, filho do maior pioneiro Katofiano João de Oliveira ou João do Katofe ).

Também, cabe aqui rever a poesia e a fotografia do nosso post MUITA BANGA, em http://kabiaka.blogspot.com, por mim escrita, em 11/06/2006, quando me deslumbrei com a criatividade evidenciada na concepção da carroça da foto:
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Oi Chibante!
Oi Amante!
Encosta pr'á canga,
Pr'á frente boi...
Oi Suzuki!
Oi Toyota!
Tempo do Kota Kimbaça já foi...
Minha carroça tem mais banga,
Pr'á canga boi,
Como no tempo do Kota,
Não sai da rota...

Figura 4 – Novo Toyota angolano com tração triplamente turbinada.

Apesar da minha grande admiração por ele, como não podia deixar de ser, o Kota Kimbaça também foi uma vítima das minhas artes de Kabiá-Kabiaka. Antes dos meus 4 a 5 anos (1957-1958) conheci a NSU do Kota Kimbaça; era uma motorizada de pedais em cima da qual se escarrapachava , para gáudio dos mais novos e dos kimbundus, a grande massa do seu dono encimada por um chapéu de abas largas. Nos últimos tempos dos anos 1960 e primeiros de 1970, ele referia-se a ela como a Velha e, muitas vezes, o ouvi pedir para o seu filho caçula:

- Oh António, traz a Velha!

E, como a Velha não pegava mais nos pedais, ele dava uma corridinha para o necessário embalo e montava rápido na garupa da cansada magrela, enquanto soltava a embreagem para ela pegar no tranco. Na chegada, desligava o motor antecipadamente e usava os pés a arrastar no chão para ajudar os travões bastante desafinados. O arranque e a chegada eram espetáculos tão dignos de ser vistos como a viagem rumo ao sul da povoação. Se a Velha falasse certamente expressaria o seu Muito Obrigado diariamente ao seu dono por tanta estima e fidelidade, pois, em vez de Velha, eu preferia designar a NSU por “Não Se Usa”.
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Figura 5- Motorizada NSU modelo Quickly Luxus, similar à Velha do Kota Kimbaça.
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Mas, quando a NSU do Kota Kimbaça, era novinha em folha, eu por duas vezes resolvi dificultar-lhe o arranque. Aproximei-me sorrateiramente dela e puxei a mangueira da gasolina, após abrir a válvula abaixo do tanque; saboreei o meu veneno a escorrer pelos cantos dos lábios, a ver o combustível a derramar-se pelo chão. Depois, da minha varanda, esperei que o Kota Kimbaça fosse dar o arranque; ele pedalava vigorosamente até cansar e nada... A certa altura, chacoalhou o tanque entre as pernas e verificou que estava vazio. Só, então, verificou que a mangueira que ligava o tanque ao carburador estava solta. Quando ele contou ao meu pai, já com suspeitas do autor da façanha, o Kilamba Vicente olhou-me de soslaio e disse:

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Foste tu!

Não respondi, mas o olhar matreiro me denunciou.

Na segunda vez, logo após a primeira pedalada, o Kota Kimbaça já desfrutava do “saber de experiência feito”, cantado por Camões, e soltou um brado de protesto que me fez estremecer na varanda, onde o espreitava.

- Ah, Lúcio, Lúcio!...

Nunca me esqueci dos gritos, nem do puxão de orelhas que levei de um pai desiludido por ter um filho fabricado tão fora do molde da família.

A finalizar, eu sei que o Kota Kimbaça, do mundo espiritual para onde partiu, quando morava nos Estados Unidos da América, ao ver-me lembrar estas histórias, solta a sua gaitada e expressão de admiração com o seu timbre pessoal, que tantas vezes escutei no Katofe quando se sentava em ameno
sunguilar[12] numa roda de colonos Katofianos:

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Iá-iá, ia-iá, iá-iá... Pópilas patrício!

Para ele e todos os que me lêem, envio o saudoso abraço do
Kabiá-Kabiaka.

[1] Designação dada pelos habitantes de Luanda a quem nasceu no sul de Angola.
[2] Estábulo, curral de tratamento do gado.
[3] Mais-Velho, designação dada pelos angolanos a pessoas de mais idade, mais experientes e sábias, merecedoras de admiração e respeito pelos mais novos.
[4] Gordo, pessoa de porte avantajado.
[5] Natural da região do Huambo – Angola.
[6] Apelido dado pelos indígenas ao meu irmão José Estevam da Silveira Matos.
[7] Pernas.
[8] Povos da etnia Kimbundu (ver mapa etnográfico de Angola), que ia incluía dos grupos Quibala, ao sul, a Dembos, ao norte, e de Songo, a leste, a Ngola, ao oeste.
[9] Busca-Água, por tradução literal do Kimbundu.
[10] Pega na cabeça! Pega na cabeça! Pega na cabeça!
[11] Camioneta.
[12] Conversar.