sábado, agosto 20, 2005

O VALOR DO PASSADO

Ao recordar muito o passado, principalmente, a minha infância e juventude em Angola, pode alguém me acusar de ser saudosista, de querer voltar no tempo e viver uma realidade que já não existe. Todavia, esse pressuposto não tem qualquer fundamento e não resistiria a uma análise superficial das razões que me levam a relatar tantas das belas lembranças daquele tempo, sobretudo, se o julgamento de quem analisa for feito num diálogo ameno comigo.

Então, por que falo tanto do passado? Por que recordá-lo com tanta intensidade, expondo tanto o que constantemente brota na minha alma a respeito dele?

As razões são múltiplas... Passo a escrever sobre as duas mais importantes.

A razão principal para eu recordar tanto o meu passado angolano é que, com toda a certeza, aqueles que não ousam recordar o passado estão condenados a repeti-lo no pior sentido. A verdade é que não é possível reeditar o passado, como se tratasse de uma nova tiragem de novos exemplares dum livro já escrito... O passado não deve ser recordado para repetição, mas, sim, para compreensão. Realmente, a vida só pode ser compreendida com um olhar para trás, embora só possa ser vivida enxergando o caminho pela frente. Aqueles que se apegam ao passado recusam o exercício da compreensão, ficam estagnados, na imitação, e, como alguém disse, “a história só se repete como farsa”. Ao tentar repetir o passado, estamos literalmente a construir uma farsa. A vida deixa de ser aventura, novidade desafiadora, um incentivo ao crescimento, e passa a ser uma reprodução, muitas vezes, dramática e vazia, sem o selo vivificante da criatividade. Recordar o passado não pode se resumir a remexer a caixa do lixo da nossa história de vida, para enredar a alma que constrói o presente e o futuro. Porque, se assim o fizermos, apenas, tendemos a uma visão limitante da vida e fatalmente passamos a prestar mais atenção em fatos negativos, que alimentam mágoas e medos, que só mancham a nossa alma. A mágoa é um sentimento do passado revivido no presente. O medo é um sentimento do passado projetado no futuro. Se deixarmos o passado semear na nossa alma mágoas e medos, então, ele se constituirá no nosso cárcere. O passado não deve ser prisão, mas libertação...

Assim, a outra razão porque eu recordo o meu passado angolano é que ele é um berço e não uma prisão. Ele é fonte constante de inspiração. É vida, não fardo mortificante, uma vida que teima continuamente em se renovar, em novas visões de beleza nunca dantes reveladas. No passado, como no berço dos nossos primeiros anos de vida, devemos buscar inspiração, para embelezar o presente e otimizar a criação do futuro. Ninguém escolheu o berço em que nasceu! Esta minha afirmação pode conduzir a polêmicas... Efetivamente, há algum tempo assisti a uma palestra duma corrente filosófica de inspiração budista que defende a crença na reencarnação; o palestrante procurou “fazer a cabeça” dos ouvintes ao afirmar que, antes mesmo de nascermos, nós escolhemos os nossos pais terrenos e, portanto, a família a que pertencemos em cada passagem terráquea é uma opção sábia da nossa alma, visando o seu melhor desenvolvimento. Como eu não me lembro de ter feito algum dia essa opção, continuo a afirmar convictamente que “ninguém escolheu o berço em que nasceu!” Então, se assim é, como sempre me ditou a minha percepção íntima, o que eu posso buscar do berço que é o meu passado? A grande função do berço é fornecer proteção e conforto e não aprisionar o recém-nascido no desenvolvimento gradual dos seus movimentos de exploração da realidade a desvendar quotidianamente. Por isso, os pais costumam pendurar no berço muitos brinquedos multicoloridos e sonoros, para desafiar o espírito explorador do seu baby. Agora, também, na fase adulta, o nosso berço que é o passado só serve para inspiração na criação do presente e do futuro. Portanto, não há lugar para a imitação e repetição, quanto à recordação do passado, porém, para o estímulo à criatividade na vivência do presente e construção do futuro, com maior harmonia, clarividência e determinação. Com esta visão, o passado é transformado no trampolim do ginasta que vende saúde e não no divã do psicanalista que acumula confissões de frustração.

Quando Buda residiu no mosteiro do Bosque de Jeta, na cidade de Sravasti, um certo dia chamou os monges para os instruir sobre ‘a melhor maneira de viver sozinho’. O Buda então ensinou:

Não sigam o passado.
Não se percam no futuro.
O passado não mais existe.
O futuro ainda não chegou.
Observando profundamente a vida como ela é aqui e agora,
o praticante permanece equilibrado e livre.
Devemos ser diligentes a todo o instante.
Esperar até amanhã pode ser muito tarde.
A morte chega inesperadamente.
Como podemos barganhar com ela?

Segundo avaliações já feitas por profissionais com pessoas que buscam ajuda psicológica, elas vivem 70% das suas vidas no passado, destilando mágoas, 20% no futuro pela expressão de ansiedade, baseada em medos, e só 10% no presente. Todavia, como salientou Buda para os seus monges, o presente é o que existe, e cada instante presente deve ser vivido diligentemente, pois esperar até ao dia seguinte pode ser muito tarde. Concluindo, o passado só serve para compreensão e inspiração e o futuro é um convite à criatividade.

Kabiá-Kabiaka, a quem o meu pai resolveu denominar tão eruditamente, em meio às etiquetas e respeitabilidades das suas vacas leiteiras, na savana do Catofe, de Lúcio Flávio da Silveira Matos.
Blumenau, 20/08/2005.