Os rapazes e as moças que passaram pelo velho Liceu de Angra nos bons anos trinta (1930-1940), percebem perfeitamente a quem me refiro: ao Homem singular e encantador, que acaba de falecer em Lisboa aos 97 anos (até nisso fora do vulgar) – o Dr. Joaquim Moniz de Sá Corte Real e Amaral.
Vários dos seus alunos e colegas escreveram já sobre Ele, evidenciando a sua vida de pedagogo, de político, de homem bom, pleno de verve, penache e sabedoria, com que enfrentou os bons e os maus momentos que lhe reservou a sua longa vida.
Não fosse a forma ímpar como dele recebi influência perdurável – já lá vão quase cinquenta anos – a qual me levou a um destino muito diverso dos meus colegas e amigos de então, mais valia hoje calar-me, curvando-me reverente perante a sua memória inolvidável
De 1932 a 1938, eu e os meus companheiros de caminho, habituámo-nos a ver entrar no velho Convento de São Francisco o “Nosso Reitor”, figura imponente, revestida de sobretudo azul, polainitos, chapéu à diplomata, emoldurando uma cara de “lua cheia", bigode à “adolphe menjou”, e um fino sorriso crítico de quem conhecia os homens e a sua história, que era capaz de compreender e desculpar – sem quebra do velho bom respeitinho – os pecadilhos da “malta"! Como acessório indispensável a célebre bengalinha de castão de prata que, sem nada ter de agressiva, dominava as veleidades e tentativas de greve académica, em dias lembrados!
Se não erro, o Dr. Corte Real e Amaral só foi nosso professor - História e Geografia – nos 5º. e 6º. anos; mas as suas lições, não fazendo esquecer as do saudoso Dr. Duque Vieira, permitiram-nos conhecer uma forma diferente de abordar a História e as estórias subjacentes. As suas palestras no alto da Memória ou deambulando pelos redutos do Monte Brasil, se não assumiam tons épicos que não estavam no seu feitio, eram vivas e excitantes, tanto para os elementos masculinos como femininos dos seus fascinados ouvintes. “Vejam bem meninos!...” E, do alto da Memória desbobinavam os Moinhos e a Casa do Capitão, donde saíram em tempos idos os Cortes Reais para as brumas do Ocidente, alguns para não mais voltarem... Descia a Rua da Sé a figura apaixonante e apaixonada de Violante... Assomava às ameias do Castelinho a figura do incorruptível Ciprião... No Monte Brasil assistíamos, como de palanque, à entrada na Baía de Angra de naus e galeões imperiais, ajoujados de riquezas e especiarias, tripulados por escassos e rudes marinheiros, olhos esbugalhados pelas cousas nunca até então vistas, marcados por cicatrizes de piratas, rijos ventos e mares profundos e implacáveis...
Porém o que me levou a este canhestro desfiar de reverente lembrança, foram três iniciativas do Dr. Corte Real, que me marcaram para a vida adulta: a realização anual no Liceu da Semana do Ultramar, a existência da Sala do Ultramar recoberta de recordações por ele recolhidas em Angola, e as suas palestras sobre o Ultramar que traduziam a sua experiência como oficial miliciano em Angola, onde prestara serviço na cidade do Huambo (Nova Lisboa), criação do General Norton de Matos, génio ultramarino frustrado pela politiquice da sua época e democrata de raiz, hoje propositadamente esquecido. O Dr. Corte Real servira no chamado quartel da Aviação, onde – mal sabia eu então – seria tropa em 1941, no 1º. curso de milicianos da 1ª. Escola de Quadros Militares que se fundou em Angola.
O “Nosso Reitor “ não seria um ultramarino ferrenho – se não me engano nunca mais voltou ao Ultramar – mas a sua experiência castrense em Angola e a sua consciência de cultor da História pátria, alertavam-no – sem pieguices ou oportunismo – para o presente e o futuro do seu País e dos Povos que o integravam.
E, assim, o Dr. Corte Real e Amaral, a par com o jorgense Coronel António Silveira Lopes, instalaram em mim, primeiro a curiosidade e depois o entusiasmo e o amor pelo Ultramar Português, e me levaram a transmiti-los a meus pais e irmãos, que lá abalaram para Angola em 1937 à procura de novos horizontes e terras largas que escasseavam na nossa Ilha, e para onde segui em 1939, num desejo premente de colaborar, dentro da minha modéstia, nessa exaltante tarefa de construir um mundo novo.
Por lá gastei a mocidade durante trinta e seis anos (excepção de escassos quatro meses), e se de lá voltei escasso de bens materiais, acompanha-me uma rica vivência que por nada trocaria. Continuo a considerar ter sido um privilégio a minha modesta contribuição numa terra e num período histórico da nossa Pátria que – ultrapassados regimes e ideologias – amainados os ventos, o futuro fará a justiça merecida.
“Quinto Império" (Império do Divino Espírito?) várias vezes adiado, não um exclusivo de Portugal e da nossa gente, mas do qual o nosso Povo foi e pode continuar a ser pioneiro!...
Assim, o que descrevo basta para justificar a modesta mas sincera homenagem que aqui presto ao Homem que foi o Dr. Joaquim Moniz de Sá Corte Real e Amaral – o “NOSSO REITOR".
ANGRA, Porto de Naus e Cidade Encantada de Impérios, setembro de 1987.
VICENTE DE MATOS.