quarta-feira, abril 21, 2021

O "NOSSO REITOR"

Os rapazes e as moças que passaram pelo velho Liceu de Angra nos bons anos trinta (1930-1940), percebem perfeitamente a quem me refiro: ao Homem singular e encantador, que acaba de falecer em Lisboa aos 97 anos (até nisso fora do vulgar) – o Dr. Joaquim Moniz de Sá Corte Real e Amaral.



Figura 1– O Dr. “Corte-Real” (28/08/1889-15/08/1987), como era normalmente designado. Ao centro, com as comendas e homenagens com que foi agraciado pelos brilhantes serviços públicos prestados – Cavaleiro da Ordem Militar de Avis (1925), Comendador da Ordem Militar de Cristo (1934), Comendador da Ordem de Benemerência (1940), Grão-Oficial da Ordem Militar de Cristo (1941) e Comendador da Ordem de Instrução Pública (1959).

Vários dos seus alunos e colegas escreveram já sobre Ele, evidenciando a sua  vida de pedagogo,  de político, de homem bom, pleno de verve, penache e sabedoria, com que enfrentou os bons e os maus momentos que lhe reservou a sua longa vida.

Não fosse a forma ímpar como dele recebi influência perdurável – já lá vão quase cinquenta anos – a qual me levou a um destino muito diverso dos meus colegas e amigos de então, mais valia hoje calar-me, curvando-me reverente perante a sua memória inolvidável

De 1932 a 1938, eu e os meus companheiros de caminho, habituámo-nos a ver entrar no velho Convento de São Francisco o “Nosso Reitor”, figura imponente,  revestida de sobretudo azul, polainitos, chapéu à diplomata,  emoldurando uma cara de “lua cheia", bigode à “adolphe menjou”, e um fino sorriso crítico de quem conhecia os homens e a sua história, que era capaz de compreender e desculpar – sem quebra do velho bom respeitinho – os pecadilhos da “malta"! Como acessório indispensável a célebre bengalinha de castão de prata que, sem nada ter de agressiva, dominava as veleidades e tentativas de greve académica,  em dias lembrados!

Da malta desse tempo, devo ser talvez o mais insuspeito para recordar a equanimidade do “Nosso Reitor", pois sofri por duas vezes as sanções morigeradoras por ele aplicadas, por bem de domar a minha precoce rebeldia: no meu 4º. Ano, transitava na rua Rio de Janeiro, com o colega Lopes Gomes, ao cruzar com o Dr. Feliciano Ramos não tirei a minha boina à sua passagem como fizera o companheiro. Bem aleguei não ter enxergado o Mestre, do outro lado da rua, mas perante  a sua queixa na Reitoria, a minha quase lesa-majestade custou-me três dias de expulsão do Liceu. No ano seguinte, perante uma altercação nos corredores do Liceu com o Sr. Lima – o bondoso e paciente Sr. Lima – presenciada pelo Dr. Pato François, que obrigou o Sr. Lima a participar na Reitoria. Como repetente em suspeitas façanhas de rebeldia, custou-me pena igual à do ano anterior. Mas disso – talvez porque aspirasse a uns feriados intercalares – nunca por nunca guardei qualquer rancor aos intervenientes,  talvez com ténue excepção para o Dr. Feliciano Ramos que, apesar de sumidade em literatura portuguesa, de facto, aos nossos olhos irreverentes, era um grande chato e senhor de um temperamento quesilento que não facilitava, a um jorgense vulcânico, “assaluto e malcriado" , “catar-lhe cortesias"! O que de resto não acontecia com o “Nosso Reitor”, que facilmente cativava os rebeldes mais empedernidos!

Figura 2– Claustro do Convento de São Francisco, onde funcionou o Liceu Nacional de Angra do Heroísmo desde a sua criação em 20/09/1844, no contexto da reforma educativa do governo Costa Cabral, até à transferência em 09/10/1969 para as instalações atuais construídas de raiz, sob a gestão do ministro da educação  Prof. Dr. José Hermano Saraiva no governo Marcello Caetano. 

Se não erro, o Dr. Corte Real e Amaral só foi nosso professor  - História  e Geografia – nos 5º. e 6º. anos; mas as suas lições,  não fazendo esquecer as do saudoso Dr. Duque Vieira, permitiram-nos conhecer uma forma diferente de abordar a História e as estórias subjacentes. As suas palestras no alto da Memória ou deambulando pelos redutos do Monte Brasil,  se não assumiam tons épicos que não estavam no seu feitio, eram  vivas e excitantes, tanto para os elementos masculinos como femininos dos seus fascinados ouvintes. “Vejam bem meninos!...” E, do alto da Memória desbobinavam os Moinhos e a Casa do Capitão,  donde saíram em tempos idos os Cortes Reais para as brumas do Ocidente, alguns para não  mais voltarem... Descia a Rua da Sé a figura apaixonante e apaixonada de Violante... Assomava às ameias do Castelinho a figura do incorruptível Ciprião... No Monte Brasil assistíamos, como de palanque, à entrada na Baía de Angra de naus e galeões imperiais, ajoujados de riquezas e especiarias, tripulados por escassos e rudes marinheiros, olhos esbugalhados pelas cousas nunca até então vistas, marcados por cicatrizes de piratas, rijos ventos e mares profundos e implacáveis...

Porém o que me levou a este canhestro desfiar de reverente lembrança, foram três iniciativas do Dr. Corte Real, que me marcaram para a vida adulta: a realização anual no Liceu da Semana do Ultramar, a existência da Sala do Ultramar recoberta de recordações por ele recolhidas em Angola, e as suas palestras sobre o Ultramar que traduziam a sua experiência como oficial miliciano em Angola, onde prestara serviço na cidade do Huambo (Nova Lisboa), criação do General Norton de Matos,  génio ultramarino frustrado pela politiquice da sua época e democrata de raiz, hoje propositadamente esquecido. O Dr. Corte Real servira no chamado quartel da Aviação,  onde – mal sabia eu então – seria tropa em 1941, no 1º. curso de milicianos da 1ª. Escola de Quadros Militares que se fundou em Angola.

O “Nosso Reitor “ não seria um ultramarino ferrenho – se não me engano nunca mais voltou ao Ultramar – mas a sua experiência castrense em Angola e a sua consciência de cultor da História pátria,  alertavam-no – sem pieguices ou oportunismo – para o presente e o futuro do seu País e dos Povos que o integravam.

E, assim, o Dr. Corte Real e Amaral,  a par com o jorgense Coronel António Silveira Lopes,  instalaram em mim, primeiro a curiosidade e depois o entusiasmo e o amor pelo Ultramar Português,  e me levaram a transmiti-los a meus pais e irmãos,  que lá abalaram para Angola em 1937 à procura de novos horizontes e terras largas que escasseavam na nossa Ilha, e para onde segui em 1939, num desejo premente de colaborar, dentro da minha modéstia,  nessa exaltante tarefa de construir um mundo novo.

Por lá gastei a mocidade durante trinta e seis anos (excepção de escassos quatro meses), e se de lá voltei escasso de bens materiais,  acompanha-me uma rica vivência que por nada trocaria. Continuo a considerar ter sido um privilégio a minha modesta contribuição numa terra e num período histórico da nossa Pátria que – ultrapassados regimes e ideologias – amainados os ventos, o futuro fará a justiça merecida.

“Quinto Império" (Império do Divino Espírito?) várias vezes adiado, não um exclusivo de Portugal e da nossa gente, mas do qual o nosso Povo foi e pode continuar a ser pioneiro!...

Assim, o que descrevo basta para justificar a modesta mas sincera homenagem que aqui presto ao Homem que foi o Dr. Joaquim Moniz de Sá Corte Real e Amaral – o “NOSSO REITOR".

ANGRA, Porto de Naus e Cidade Encantada de Impérios,  setembro de 1987.

VICENTE DE MATOS.