Em
setembro do ano passado recebi do meu amigo conterrâneo Luciano Canhanga – ver
blog www.mesumajikuka.blogspot.com.br – algumas questões sobre o maior expoente da colonização açoriana em
Angola, sendo esta a primeira pergunta: “Lúcio, havia uma cidade, pequena, mas
com este estatuto ganho em 1974, que é a Kibala. A dez quilómetros erguia-se a
vila de Katofe com igreja sumptuosa e casas majestosas (naquele tempo) que
comentário?”.
Efetivamente, mesmo atendendo aos padrões da época, não considero
que o Catofe tivesse, em 1974, uma igreja sumptuosa e casas de moradia
majestosas. A verdade é que eram edificações de alvenaria de boa qualidade,
visto que o abandono e a depredação de mais de trinta anos não comprometeram a
sua solidez estrutural, a ponto de ser ainda hoje possível recuperá-las com
simples obras envolvendo o acabamento, as instalações hidro-sanitárias e
elétricas e outros complementos. A igreja para ser sumptuosa precisaria de
relíquias em ouro, acabamento interior sofisticado, decoração e mobiliário
abastados, o que efetivamente não possuía como em outras igrejas da mesma
época. Quanto às casas dos moradores catofianos, elas podiam ser consideradas
de médias no conforto, tamanho e acabamento construtivo, se comparadas com
mansões que já proliferavam nas cidades mais vizinhas; claro, elas eram motivo
de orgulho para quem teve que morar em casas de pau-a-pique e adobe cobertas de
colmo quando chegou a uma savana que se mostrou bastante inóspita no início do
desbravamento.
É de destacar que a igreja deixada em 1975 pode ser considerada um marco
da evolução da colonização açoriana nas baixas do Catofe, pois era a terceira
construção e os colonos açorianos sempre consideraram prioritário o
melhoramento contínuo desse símbolo físico da sua religiosidade, quiçá, como
retribuição das graças divinas recebidas que se traduziam num progresso
material, a princípio incipiente, que se mostrava crescente e imparável à época
da diáspora de 1975.
Como a minha memória não abrange os primórdios da colonização, recorro
aos subsídios do meu Kilamba Vicente Teixeira de Matos que aborda assim as
metamorfoses experimentadas pela igreja de S. Jorge do Catofe:
A assistência religiosa
foi desde o início prestada pela Missão Católica de Kibala, numa casa
particular. Em 1 de Setembro de 1952, Sua Excelência Reverendíssima o Arcebispo
de Luanda, benzeu a primeira pedra da pequena capela, que viria a ser dedicada
ao padroeiro S. Jorge pelo mesmo Arcebispo, em 1954. Esta capela viria a ser
reconstruída mais duas vezes, transformando-se numa bela igreja, que não
envergonhou os seus construtores. Deve assinalar-se que alguns povoadores
contribuíram para estas obras com quantias superiores às que dispenderam nas
suas próprias casas. Não negando a sua generosidade e a sua fé! (MATOS, V.T., S. Jorge do Katofe ou a Décima Ilha dos
Açores. Revista ATLÂNTIDA, VoI.
XLVI, 2001, também, publicado em www.kabiaka.blogspot.com.br).
Tenho uma vaga memória desta primeira igreja, que era efetivamente uma
capela ou ermida. Ela foi inaugurada quando eu tinha apenas 1 ano de idade e,
em 1960-61, portanto cerca de 6 anos depois, já tinha sido acrescentada
e melhorada; recebeu uma torre de sineira e uma nova fachada, assumindo um
aspecto que poderia ser apropriadamente designado de igreja. Estas melhorias
foram possíveis com o crescimento das Festas do Divino Espírito Santo, com
duração de uma semana completa, incluindo vários rituais e atos significativos,
tais como missa, procissão, distribuição de carne e pão a famílias nativas no
dia de Pentecostes, refeições para todos os participantes na festa, leilões de
gado, apresentações de filarmónica, tourada, competição de tiro ao alvo e
bailes.
A primeira
igreja do Catofe.
A segunda
igreja do Catofe.
Altar da
primeira e segunda igrejas.
A construção da torre ativou a imaginação e a criatividade artística da
petizada da qual eu fazia parte. Lembro-me que, logo após a inauguração desta
segunda igreja, lá por 1960, nos meus vigorosos 7 anos, fui com o meu irmão
Zeca e o meu amigo João Duarte Betencourt testar a aceleração da gravidade com
uma ninhada de gatos que se abrigava debaixo das escadas da sineira. Pegávamos
os gatos com as patas para cima e os jogávamos lá de cima da torre para
ficarmos surpreendidos com a volta que eles davam no ar para pousar bem
direitinhos no chão, com as patas para baixo, e sair em corrida desesperada,
para bem longe e sem olhar para trás. Antes que alguém nos julgue e condene
como maldosos, pois um dos três autores da proeza até acabou por se tornar
veterinário, deixo aqui a reflexão dum pensamento de Friedrich Wilhelm
Nietzsche:
A criança é a inocência, e o
esquecimento, um novo começar, um brinquedo, uma roda que gira sobre si, um
movimento, uma santa afirmação. (NIETZSCHE, Assim falou Zarathustra. Martin Claret:
São Paulo, 2004, p.35).
Realmente, naquele tempo, como muito bem teorizou Nietzsche, éramos
crianças muito saudáveis que levávamos a vida como uma obra de arte, sem
regras, por isso, vivíamos sem complexos num mundo estético e não moral, para
grande assombro e pavor dos velhos e falsos moralistas. Mas, havia uns “Mais
Velhos” que se deliciavam e reviam nas nossas traquinices. No seu íntimo eles
sentiam que o mundo é como a vida de uma criança saudável, sem qualquer
castração adulta, uma eterna ausência de ordem, somente luta e contradição,
fluxo e refluxo, ir e vir, o caos da eterna mudança e da criatividade,
continuamente criando e recriando, construindo e destruindo, sem qualquer
sentimento de culpa. Construir e destruir faz parte da natureza infantil, pois
nessa fase da vida se está além do bem e do mal. O homem deve sempre ter a
liberdade de criar e recriar novos valores, fazendo e desfazendo avaliações,
como a criança quando brinca, talvez, por isso, mesmo, a igreja do Catofe teve
três versões, a última delas após completa demolição das duas primeiras.
A segunda igreja do Catofe em dia de procissão do
Divino Espírito Santo.
De 1961 a 1966, fui
submetido a um exílio forçado nas Ilhas do Mar Poente – os Açores – e, no
regresso à boa terra que me viu nascer, verifiquei que a igreja onde realizei
as minhas primeiras constatações da primeira Lei de Newton, tinha sido
completamente arrasada por mãos que estavam desejosas de construir algo maior.
Como disse Goethe, “ninguém é menor do
que o seu próprio sonho”, assim, os catofianos resolveram em meados da
década de 1960 construir uma nova igreja, que não chegava perto da
sumptuosidade das catedrais medievais, mas dispunha de espaço para acomodar não
só as cerca de setenta famílias locais na missa semanal, mas também os
forasteiros mais devotos no Dia de Pentecostes. Esta igreja, concluída em 1970,
era desprovida de luxo, contudo tinha um bom traçado arquitetônico que
proporcionava muita funcionalidade nas atividades de culto que nela se
realizavam.
A terceira igreja, logo após a inauguração em 1970.
Quero aqui ressaltar
repetidamente as palavras do meu Kilamba Vicente: “Deve assinalar-se que alguns povoadores contribuíram para estas obras
com quantias superiores às que dispenderam nas suas próprias casas. Não
negando a sua generosidade e a sua fé!”. Dizia o imperador francês Napoleão
Bonaparte que “uma sociedade sem religião
é como um navio sem bússola”. Certamente, foi a religiosidade do açoriano
do Catofe ou Catofiano que lhe garantiu a persistência e a visão suficiente
para desbravar e permanecer nessa savana angolana para ver germinar e
frutificar os resultados dos seus abnegados esforços que permitiram erigir uma
igreja, que ainda hoje muitos admiram e, posteriormente, casas de alvenaria
cuja durabilidade foi devidamente testada com as agressões trazidas por uma
guerra civil insana de um quarto de século.
Em 1975, foi implantado um
governo de inspiração comunista que, segundo algumas informações, ousou
transformar a igreja em escola comunitária e a escola em quartel militar.
Certamente, por vergonha da decisão tomada, resolveram quebrar os braços da
cruz, os quais não foram repostos na reconstrução.
Uma visão lateral da igreja destruída, no início da
década de 1990.
Um
aspecto da igreja reconstruída.
Visão da
fachada da igreja reconstruída.
Esta ideia luminosa de
transformar uma igreja em escola e a escola em quartel militar faz-me lembrar a
comparação feita por Fernando Pessoa entre catolicismo e comunismo:
Ao contrário do
catolicismo, o comunismo não tem uma doutrina. Enganam-se os que supõem que ele
a tem. O catolicismo é um sistema dogmático perfeitamente definido e
compreensível, quer teologicamente, quer sociologicamente. O comunismo não é um
sistema: é um dogmatismo sem sistema – o dogmatismo informe da brutalidade da
dissolução. Se o que há de lixo moral e mental em todos os cérebros pudesse ser
varrido e reunido, e com ele se formar uma figura gigantesca, tal seria a
figura do comunismo, inimigo supremo da liberdade e da humanidade, como é tudo
quanto dorme nos baixos instintos que se escondem em cada um de nós. O
comunismo não é uma doutrina porque é uma antidoutrina, ou uma contradoutrina.
Tudo quanto o homem tem conquistado, até hoje, de espiritualidade moral e
mental – isto é de civilização e cultura –, tudo isso ele inverte para formar a
doutrina que não tem.
Realmente, o comunismo não
fincou raízes em Angola, por isso, a igreja transformada em escola por algum
tempo, depois destruída e abandonada, voltou a ser igreja, após uma
reconstrução que lhe restituiu a dignidade, mas não a majestade de outrora,
basta examinar detalhadamente a cruz que não foi recuperada e as imperfeições que
se manifestam no reboco, bem visíveis até nas fotografias. Uma comprovação de
que a técnica de bem edificar de quarenta anos atrás era totalmente dominada
com a competente orientação dos mestres-de-obras açorianos, entre os quais se
destacavam os Srs. Estevam Jesus de Matos e Manuel Bettencourt Oliveira, que
aqui merecem a nossa homenagem.
Hoje, a igreja não acolhe
os colonos que a erigiram, todavia cumpre a missão que animou os seus criadores
a fazê-la passar por diversas metamorfoses para engrandecê-la e torná-la como
um marco perene de difusão de religiosidade e espiritualização no meio da
savana angolana, às margens do rio Katofe.
Saída da missa hoje, com a Casa do Espírito Santo à direita, que aguarda
a reconstrução.
Um grande
abraço do Kabiá-Kabiaka.