sábado, abril 12, 2008

O ENGENHEIRO-ARQUITETO SALALÉ

Lembro-me que nas poucas e raras vezes que embarquei em caçadas noctívagas de farolim, devidamente, comandadas pelo meu irmão ou o meu tio de dois metros de comprido, de vez em quando, o carreiro gentio que percorria pelo meio do mato se tornava estreito ou de pavimentação irregular por um tropeço num morro de salalé. Claro, aproveitava para excomungar o que me viesse na cabeça, principalmente, a maldita idéia de me ter deixado arrastar para mais uma atividade que simplesmente detestava; eu sempre considerei muito mais inteligente e vantajoso ficar no quentinho do vale dos lençóis e depois caçar o bife de nunce no prato do mata-bicho, o que levava o meu irmão “Paga-Fogo” a espumar de raiva por ter lhe recusado a minha companhia na caçada da noite anterior. Era uma satisfação vê-lo furioso quando ele se levantava de um sono curto e mal dormido e me via na mesa já a saborear o bife que ele tinha caçado e cortado. Quando ele me recriminava por não ter ido à caça, mas ser ligeiro na deglutição dos bifes, eu sempre respondia: “Eu prefiro caçar no prato... É muito mais fácil e inteligente!” A verdade é que nunca tive atração por manejar armas de fogo. Mas, voltemos à vaca fria, o que me traz aqui é o Sr. Salalé.

Magníficas fotografias de morros de salalé da savana do Catofe tiradas pelo nosso amigo Abano Faustino, residente na América do Norte, na sua viagem a Angola no início da estação das chuvas de 2006.

Comecei a apreciar o Salalé (Macrotermes Natalensis) já nos primeiros anos da minha mais tenra infância, quando ele aparecia em grandes nuvens esvoaçantes no início da estação das chuvas e eu corria com os meus amigos kimbundus para apanhar o mais que podia; então, desde cedo, aprendi que essas formigas aladas poderiam ser um repasto muito útil como reforço das refeições dos bifes suculentos de nunce, sob o olhar arrepiado dos meus pais e avós. Mais tarde, em Luanda, pelos meus dezassete anos de idade, ouvi da boca do etnólogo Dr. José Redinha que o salalé depois de seco e temperado poderia ser o melhor aperitivo para o whisky, segundo ele tinha aprendido com um engenheiro estrangeiro ao serviço da Diamang.
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Quando entrei no curso de engenharia civil, aprendi mais a admirar o salalé pela maneira como essa formiga branca construía os seus morros. Realmente, o morro de salalé é uma obra de engenharia estrutural e de arquitetura. Os montes de salalé podem atingir até nove metros de altura. São feitos de uma pasta de terra, fragmentos de madeira, excrementos e saliva mastigada pelas próprias térmitas. O salalé executa os seus ninhos de parede muito resistente em duas frentes de trabalho que no fim da obra se encontram no meio, isto é, no topo do morro. Este talento inato do salalé para a engenharia e arquitetura foi muito bem cantado pelo angolano Maurício Gomes em certo trecho do poema Exortação:

Olhai o senhor arquitecto Salalé,
tão pequenino, tão teimoso e diligente...
Como ele projecta e constrói castelos,
milhões de vezes maiores que ele é,
para vergonha nossa,
que pouco fazemos,presos de fútil, preguiçoso dandismo...

Foto de morro gigante de salalé, certamente com nove metros ou mais, que circula pela internet (autoria desconhecida).

Quiçá, foi após a leitura do poema de Maurício Gomes que o pai do concreto (ou betão) armado brasileiro Engenheiro Emílio Baumgart, nascido aqui, na minha cidade de Blumenau-SC, se sentiu desafiado a criar o sistema de construção de pontes por balanços sucessivos, bem à moda do engenheiro Salalé. A execução desse tipo de pontes ocorre dos apoios para o meio do vão, em duas frentes de trabalho que se encontram no centro; a vantagem desse sistema construtivo de pontes de concreto protendido (ou betão pré-esforçado) é dispensar o cimbramento, ou seja, as armações para o molde em arco. Também, são utilizados elementos pré-moldados, que vão sendo incorporados sucessivamente ao corpo da ponte de ambos os lados denominados de aduelas.

Ilustração da ponte Eusébio Matoso em São Paulo, projetada por Ernani Dias e executada pelo processo de balanços sucessivos e moldada “in-loco”.

Este paralelismo entre as obras do salalé e as obras humanas de construção civil não é de todo descabido se atentarmos na soberba descrição que o escritor angolano Castro Soromenho (1910-1968) faz sobre as habitações dos calambas, na novela “Calenga e a lenda dos rios de amor e morte” (in Calenga, 1945), que narra a história de Calenga, o menino que cresceu para ser soba dos calambas, e o seu encontro com os cassongos:

“A aldeia dos calambas não tinha palhotas. As suas habitações tinham sido abertas em pequenos morros de salalé. Habitavam dentro desses morros duros como pedra, que legiões de térmitas construíram em longos anos, onde elas viviam em extensas e delgadas galerias, cruzando-se em todos os sentidos. Quando uma dessas galerias se abria dentro do buraco onde se deitava o calamba, estabelecia-se pavor, e o homem matava as térmitas para não ser por elas devorado. Só em presença desse perigo é que o homem matava as térmitas. De resto, deixava-as trabalhar à vontade para aumentarem o morro, onde ele, depois do tempo o endurecer, alargava a casa. Então, o calamba podia arranjar mais uma mulher e agasalhá-la sob a sua vista”.

Efetivamente, o salalé (em Angola), ou cupim (no Brasil), ou térmita (em Portugal), ou muchém (em Moçambique), ou ainda simplesmente formiga-branca, é um inseto eusocial – por ter três características: uma sobreposição de gerações num mesmo ninho, o cuidado cooperativo com a prole, e uma divisão de tarefas (reprodutores e operárias) – da ordem Isoptera, que contém cerca de 2.800 espécies catalogadas no mundo. Mais conhecidos por sua importância econômica como pragas xilófagas, pois causam grandes prejuízos nas construções de madeira que ele vai devorando para grande desespero dos proprietários. A maioria das espécies dessas formigas vive nas regiões tropicais e subtropicais, raramente além da latitude 40 graus, norte ou sul. Segundo estudos científicos, mais espécies dessas formigas podem ser encontradas num único hectare de floresta ou savana tropical do que em toda a América do Norte e Europa.

Os soldados e operários são as castas estéreis entre o salalé. Uma colónia típica é constituída de um casal reprodutor, rei e rainha, que se ocupa apenas de produzir ovos; de inúmeros operários, que executam todo o trabalho e alimentam as outras castas; e de soldados, que são responsáveis pela defesa da colônia. Existem também reprodutores secundários (neotênicos, formados a partir de ninfas cujos órgãos sexuais amadurecem sem que o desenvolvimento geral se complete), que podem substituir rei e rainha quando esses morrem, e às vezes ocorrem em grande número numa mesma colónia.

A dispersão e fundação de novas colónias geralmente ocorre num determinado período do ano, coincidindo com o início da estação chuvosa. Nessa época ocorrem as revoadas de alados, dos quais alguns poucos conseguem se acasalar e fundar uma nova colónia. É o que Manuel Rui expressa de forma tão poética na frase: “a chuva anunciada pelo salalé que, de alegria, se camicaza deixando cair suas asas para morrer feliz, por elogio às gotas de água caídas do céu” ( no livro de Sócrates Dáskalos “Do Huambo ao Huambo - um testemunho para a História de Angola”). Eu acrescento que ele deixa ainda mais felizes os seres que o conseguem comer para desespero e arrepio dos que se enojam com tal alimentação.
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A finalizar, algo que os seres humanos muito poderiam melhorar por imitar o engenheiro-arquiteto Salalé seria na imitação da sua organização social, principalmente, para o trabalho cooperativo.
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Um grande abraço do
Kabiá-Kabiaka.