sexta-feira, abril 30, 2021

A MINHA SAVANA - Parte 2/5

     A flora, que ainda permanece na minha memória, não era muito exuberante e diversificada. Realmente, a minha savana era mais rica em árvores de pequeno porte e arbustos que adorávamos chamar indistintamente de bissapas ou vissapas. Era um neologismo tão incorporado ao novo vocabulário dos colonos açorianos que se viam gostosamente africanizados. As árvores atingiam maior porte nas matas – muxitos – circundantes das nascentes dos riachos afluentes do grande rio. Nesses muxitos, de tempos em tempos, num retiro misto de cura e reflexão espiritual, se refugiavam os jovens bantos que passavam pelo rito obrigatório da circuncisão, na transição oficial da puberdade para a idade adulta, aptos a assumir maiores responsabilidades de perpetuação da espécie. Então, ali recorriam às virtudes cicatrizantes de folhagens e da água isenta de qualquer poluição, para apressar o regresso à imersão social na sua tribo. Na época, esse ritual me soava estranho, mas hoje me parece muito salutar por ser mais próximo dum viver em perfeito equilíbrio com a natureza.

Figura 3- Uma baixa do Catofe delimitada por inselbergs graníticos (Autor: Albano Faustino).

Figura 4- Inselbergs de granito entremeados por uma baixa verdejante do rio Catofe (Autor: Albano Faustino).

     Principalmente, no início da estação das chuvas a savana era pródiga em flores e frutos silvestres. Na minha memória guardo imagens de orquídeas e gladíolos, mas também outras flores cujos nomes transcendem os meus escassos conhecimentos botânicos. Entre os frutos silvestres, destaco as lachapas, maboques, romãs e tomates capuchos (cassussua), sendo o sabor dos dois últimos o mais apreciado por mim.
     Na estação seca do cacimbo os indígenas tinham o hábito contraproducente de realizar queimadas do capim seco para afugentar os animais silvestres e facilitar a sua caça de arco e flecha – zagaia. Após essas queimadas, com o advento das primeiras chuvas, brotava espontaneamente o tortulho ou cogumelo comestível que era cozinhado e saboreado em grandes paneladas.

Figura 5- Flores diversas geradas pela natureza da savana do Catofe (Autor: Albano Faustino).

Figura 6- Maboqueiro e maboques (Fonte: pt.slideshare.net).

Figura 7- Lachapas (fotos 1 e 2) e romãs (foto 3) (Autor: Albano Faustino).

Figura 8- Tomate capucho ou cassussua (Fontes: Albano Faustino; pt.slideshare.net).

     Um grande abraço do
Kabiá-Kabiaka.

GENTE DO CORAÇÃO REPARTIDO – CAP. I

À LAIA DE PREÂMBULO

Vicente Teixeira de Matos

 Sempre desejei escrever a estória – humildemente heróica – das mulheres e dos homens e da sua descendência – açorianos e açor–angolanos sofredores – que espalhados pelo “mato” angolano gravaram a duras penas e saudades margens nítidas da sua pequena terra de origem, os Açores, a esmagadora maioria proveniente  da ilha de São Jorge, contribuindo – sem sequer o intuírem, para caboucarem uma grande, generosa e próspera nação – Angola...

Figura 1- Mapa dos Açores mais antigo, existente nos dias de hoje. Na legenda em latim pode ler-se: “Estas ilhas foram percorridas com a maior diligencia, e com todo o cuidado as descreveu o português Luís Teixeira, cosmógrafo da Majestade Real. Ano de nascimento de Cristo de 1584”. (Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Azores_old_map.jpg#mw-jump-to-license).

Choquei a almejada estória com amor, durante anos e anos, deixando-me chegar aos oitenta bem puxados... Porém, sem principiar, nunca se chega ao fim...

Primeiro, socorri-me dos apontamentos, alembranças, causos, verdades “sob o manto diáfano da fantasia", escritos pelo meu chegado amigo e compadre de muitos anos e andanças – Valério Mateus (heterómino de Vicente Matos). Mais: Boletins Oficiais de Angola, Estatutos da Cooperativa Agropecuária “A Açoreana", relatórios anuais, exposições escritas e muita memória oral. Contribuições de muitos apanhados nas malhas do tempo e da saudade...

Figura 5- Jornalista Dutra Faria da ANI.

Também, recorri à contribuição do jornalista Dutra Faria, um dos três fundadores e diretor da ANI (Agência de Notícias e Informação), ou seja, as suas palestras nas Casas dos Açores do Rio de Janeiro e de Lisboa, suas crónicas no Diário Insular, de Angra do Heroísmo, de 1954, 1958, 1961 e posteriores; foi o responsável pelo crisma da “Décima Ilha dos Açores”, aquelas singelas mas sugestivas imagens açorianas confirmadas por outros visitantes, ilhéus ou não e até estrangeiros.

Passados mais de meio e de um quarto de século, do nascer e de se esfuma daquela singela utopia. Para mim, ultrapassados os oitenta – “contas e bordão" – são horas de começar!... “Em nome de Deus” começo!...