quinta-feira, junho 09, 2005

RAÍZES DA MULEMBA DE SIMULAMBUCO


Raizes da Mulemba Posted by Hello

OS SEGREDOS DA MULEMBA

Reza a história que a Rainha Ginga ou Nzinga Mbandi Ngola, a Rainha de Matamba e Angola, baptizada por missionários católicos com o nome de D. Ana de Souza (1587-1663), chegou a acampar sob uma lendária figueira africana chamada de “Mulemba-Xangola”, ainda, existente a cerca de treze quilômetros a leste de Luanda, perto das instalações do atual Observatório Astronômico da Mulemba. Também, dizem que os marcos “geodésicos” dos limites territoriais concedidos pelo Rei N’Gola a Paulo Dias de Novais eram mulembas (ou nsandas, em kikongu). Também, foi sob uma nsanda que se realizou a assinatura do célebre Tratado de Simulambuco, entre o representante do Rei de Portugal e os Príncipes e Governadores de Cabinda, em que estes colocaram os povos do enclave cabindense sob o protectorado da coroa portuguesa.

Estas figueiras africanas são árvores muito frondosas, são constituídas por vários troncos regenerados e fundidos uns nos outros, muitas vezes, com as raízes estendendo-se acima do terreno, podendo ter um perímetro de mais de seis metros e atingir uma longevidade centenária. Portanto, não é de admirar que os
manis[1] do Kongo e os sobas[2] do Ndongo fundassem à volta delas os seus povoados, pois as culturas africanas tradicionais atribuíam às mulembas um caráter sagrado, por incorporar os espíritos da terra. Dizia-se que era à volta destas árvores e sob a bênção da sua sombra, que as pessoas se compreendiam no mais íntimo do seu ser. Para o africano, de modo geral, a árvore estabelece uma real comunicação entre o subterrâneo, a superfície terrestre e as alturas celestiais. É como que uma garantia que não existe qualquer obstáculo intransponível entre Kalunga[3] (abismo dos mortos), o mundo dos viventes e o paraíso da libertação dos Malunga[4] (espíritos santos de brancos e negros) e Kalungangombe[5] (ente espiritual que acolhe as almas).

A palavra mulemba é usada no kimbundu, a língua gentílica praticada na minha savana. No kimbundu, o nome da figueira sagrada é associado comumente ao verbo ku lemba, que é sinônimo de escurecer ou ensombrar. Realmente, é costume dos africanos procurar a sombra de uma árvore para a introspecção individual ou para a troca amena de idéias, geralmente, histórias e adivinhas, através de um bate-papo, ou seja, daquilo que no kimbundu se chama
sunguilar[6], por isso, também é chamada à figueira africana a “mulemba das discussões”.

Talvez, por inspiração sobrenatural, os primeiros
mindele (plural de mundele[7] – homem branco, no kimbundu) foram atraídos pelo caráter sagrado de uma mulemba, para demarcar em volta dela a praça central da décima ilha açoriana plantada na savana. Do lado poente, foi erigida a igreja e a sul, a Casa do Divino Espírito Santo. Era a primeira manifestação desatenta de sincretismo entre a mais rígida fé católica apostólica romana e o animismo africano; era a prova material de que a mão de Nzambi[8] (Deus) está sempre ao leme dos mais bem intencionados atos humanos; era a Unicidade Divina a decretar a Unidade de todas as religiões ou rituais, como prova de que estes foram inventados pelos triviais humanos para agradar a Suprema Misericórdia, à sua restrita maneira.

Aos domingos, revelava-se mais intensamente a aura atrativa da mulemba. Os ilhéus iam chegando, atraídos por ela, confiavam-lhe as suas bicicletas ternamente encostadas uma a uma, para formar uma roda de múltiplas rodas centripetamente dispostas. Logo, se seguiam os abraços e apertos de mãos fraternalmente impostos pela saudade de uma semana de separação e isolamento no árduo trabalho de domar a savana. Sob a bênção frondosa daquela figueira sagrada animavam-se as “cavaqueiras” recheadas de termos ilhéus, que nada ficavam a dever ao sunguilamento da nova terra que os adotou como filhos.

Tudo isto eu observava detidamente, dos três aos oito anos. Como menino da savana, não entendia por que aqueles brancos gostavam de ficar conversando animadamente debaixo da mulemba. Apenas, entendia que falavam de negócios, os mais velhos, ou das meninas prendadas, que permaneciam à distância na entrada da igreja, os mais novos.

Até, o barbeiro Badaluke (Rafael, o nome de batismo) aproveitava a sombra da mulemba para tosquiar as cabeças dos ilhéus, nada afeitos ao elaborado esmero do penteado. O nome Badaluke era a corrupção, na interpretação do povo Kimbundu, do nome da terra de nascimento do barbeiro - Guadalupe, na Ilha Graciosa, Açores. Ele ia cortando os cabelos com a mesma velocidade em que costumava levar o seu veículo de transporte, que percorria a picada da fazenda ao povoado sem pegar um só pingo de lama na época das chuvas mais intensas. Só assim ele podia transformar-se no depositário mais fiel de todos os segredos de negócios e alcova que os seus clientes lhe iam confiando em voz cantada. Também, só com tal paciência de Job e tão grande moleza bovina, o Badaluke conseguia aparar o cabelo e o bigode do Aurélio Kapakeia, que recebeu este segundo nome dos indígenas por tremelicar a cabeça para um lado e outro, tal qual o pássaro homônimo. Os ouvidos e o cofre de segredos do Badaluke só eram ultrapassados pelos da mulemba, pois ela era depositária fiel duma história ancestral, muito anterior à chegada do barbeiro. Foi ali no meu silêncio perscrutador que consegui ouvir um ilhéu, que se tinha por muito sábio nos negócios, falando de que os seus sonhos de sucesso material passavam por uma cuidada criação de galinhas poedeiras, para grande contrariedade e indignação dos que divinizavam a supremacia das vacas leiteiras. Outras histórias revelavam uma coragem caricata de caçadores rapidamente adaptados ao enfrentamento das maiores feras da savana, como encarar “leões com cornos” ou, perante duas onças, “apontar o farolim de cabeça para uma e atirar de espingarda para a outra”. Tudo a mulemba ouvia e abençoava, pacientemente. Oh, paciência africana!

Certo dia, em seus cinco anos, o menino da savana e o seu mano Zeca avistaram um monandengue mumbundo (menino negro), todo vestidinho de sarja branca, tão alva de neve, e com uma fisga ao pescoço que lhes atiçou a cobiça. Eles perseguiam grandes sonhos de caçadores de siripipis, viúvas, bicos-de-lacre e outros pássaros, pousados sobre a mulemba, e, por isso, nada melhor do que um novo amigo... E, já com uma fisga bem produzida e calibrada!... Aproximaram-se e o diálogo correu solto, como convém a mentes infantis destituídas de preconceitos. O menino nativo, com cerca de 10 anos, se chamava João Eduardo e disse que estava à procura de emprego. Partimos com ele rumo a casa, já admitido ao serviço, conforme comunicamos sem tolerar contestações ao “Capitão da Malta”. Aqui, vocês ficam a saber que me refiro à minha mãe. O João Eduardo ficou com a incumbência de nos acompanhar nas traquinices de monandengue, nas idas à escola e à missa, na realização das tarefas escolares e de catecismo, sempre se comportando como um “mais-velho” bem ajuizado e interessado, para contrabalançar a irresponsabilidade dos “mininos” mindele. Não é de admirar que o João logo fez a quarta classe na escola, assumiu a vontade de se baptizar e de assumir responsabilidades de homem adulto... Onde está ele agora?... Certamente, pensando saudosamente no que nos une, não obstante o tempo, a distância e as guerras que matam o corpo e não matam a alma...

Quando regressei à savana, em 1966, depois de ser obrigado a passar cinco anos no arquipélago das nove ilhas, perdido no meio do Grande Mar Poente, foi com olhar deprimente que constatei que a mulemba central estava em adiantado e irreversível estado de seca e morte. Já ninguém se acolhia sob ela, nem para encosto das bicicletas ela servia. Ela estava devotada a um ingrato desprezo. Fazendo uso da sua linhagem sagrada, ela queria avisar profeticamente os homens da desgraça que viria em poucos anos, todavia eles não lhe prestavam qualquer atenção. Efetivamente, o prenúncio da mulemba se realizou a partir de 1975.

Só hoje, em 02 de outubro de 2003, com 50 anos, o menino da savana consegue entender o recado profético da mulemba e, por isso, escreve:

O AVISO DA MULEMBA

A mulemba era tudo
Naquele povoado de gente pioneira:
Apoio silente, confidente,
Desde papo sisudo
A conversa maneira.
Sob sua copa frondosa,
Rolavam em polvorosa
Conversas sobre
kumbú
[9]
E negócios de vida amorosa,
Em que o tu era eu, e o eu virava tu.
Mas, um dia, as folhas caíram,
Secaram, e os ramos partiram,
De tanto que murcharam,
De tão secos que ficaram...
Era o prenúncio da má sorte,
Da morte,
Da guerra,
Da diáspora de brancos e negros “sem-terra”.
Assim, foi o fim
Duma história de glória...

Lúcio Huambo
Florianópolis, 02/10/03

Até mais ver!
Kabiá-Kabiaka,a quem o meu pai resolveu denominar tão eruditamente, em meio às etiquetas e respeitabilidades das suas vacas leiteiras, na savana do Catofe, de Lúcio Flávio da Silveira Matos.

[1] Régulo africano do antigo Reino do Congo, ao norte de Angola.
[2] (Plural jisoba). Chefe local (termo kimbundu).
[3] Mar, abismo; termo também utilizado no sentido de morte, firmamento ou mundo dos mortos (t. kimbundu).
[4] (Santo de) – (termo kimbundu, plural de dilunga). Espíritos de indivíduos de raça branca ou negra que se revelam por simpatia e isoladamente, em lugar apropriado.
[5] Ente espiritual que acolhe as almas dos mortos no outro mundo (t. kimbundu).
[6] Passar a noite a conversar, geralmente a contar histórias ou adivinhas (t. kimbundu).
[7] (Plural mindele). Homem branco. Há várias explicações para a origem da expressão, mas predomina a inclinação para a tradição que relaciona os europeus com os espíritos dos antepassados (ndele, plural jindele), de cor branca (t. kimbundu).
[8] Deus (t. kimbundu, comum à generalidade das línguas bantu).
[9] Dinheiro (Do termo kimbundu ukumbu, vaidade).

MULEMBA DE SIMULAMBUCO


Mulemba de Simulambuco Posted by Hello

MUKANDAS DO KABIAKA: À GUISA DE PRÓLOGO...

Eu já sabia que um dia ia cair nesta!...

Mas, por que cargas de água?

Não se trata de fazer periodicamente um exercício de erudição ou intelectualidade, pois, quanto a isso, estou totalmente de acordo com Nietzche:
“mudei-me da casa dos eruditos e bati a porta ao sair”. Ainda, concordo com ele quando afirma que os eruditos ou intelectuais são gente treinada em “buscar o conhecimento como especialistas em rachar fios de cabelo ao meio”. Como dizem os brazukas, “não tenho saco para isso”...

Ó gente, eu sou do mato! Eu nasci no Huambo, no planalto central de Angola, na Fazenda Quissala, bem do ladinho do Forte, a 1710m de altitude, e fui criado na savana do Catofe, no centro do Kuanza Sul, a 1200m de altitude, a 350 km de Luanda na direção do Huambo (ver mapa, abaixo), em meio às vacas leiteiras que os açorianos ou
“solianos” – na transliteração do Kimbundu – consideravam quase sagradas e queriam ensinar a falar em português ilhéu nasalado e cantado como as ondas que fustigam os calhaus basálticos das Ilhas do Mar Poente, mais exatamente, da ilha de S. Jorge, sim, aquela que é conhecida como o “paraíso das mulheres, o purgatório dos homens e o inferno das vacas”... Para não perder o fio à meada, eu explico depois a razão desta expressão. Talvez, pelo que eu disse antes, eu faço questão de usurpar, para serem totalmente minhas, as palavras do criador de Zarathustra: “Amo o ar sobre a terra fresca. É melhor dormir em meio às vacas que em meio às suas etiquetas e respeitabilidades”. Portanto, não pensem que eu vou aqui “puxar o saco” de alguém, ou vou sentir maior admiração por quem puxa o meu, ou vou expressar raiva por quem vai chutar o meu dito cujo... Aqui, será uma tribuna de respeito, séria, mas não exageradamente, pois não tenho vocação para “salamaleques”.

As minhas letras neste quase-diário serão apenas reverberações dos meus pensamentos sobre a arte do possível, que procuro exercitar no dia-a-dia, tentando criar novas possibilidades para transformar a vida, a minha e a de todos os que já entenderam que o segredo do sentido da vida reside no amor e na paixão por algo, pelo que se faz. Sim, é verdade, como lembra Rubem Alves,
“o amor e a paixão não anseiam pela aposentadoria, porque são eternamente jovens”. A história da humanidade não registra, até ao momento, a reforma ou aposentadoria dos que procuraram viver apaixonados, de Miguel Ângelo, Picasso, Jorge Amado, Fernando Pessoa, etc.

Assim, o que eu escrever apenas é um pálido espelho do meu amor e paixão pela minha vida, do passado ao presente e, quiçá, futuro que imagino; é uma introvisão das cavernas da minha alma de
inhameiro, muangolê, tuga e brazuka, vertida em declarações de amor e paixão pelas minhas raízes e vivências açóricas, em meio ao Mar Poente ou à savana, pela minha angolanidade que teima em se expressar longe de Angola e pela minha maturidade brasileira perenemente enfeitiçada. Cometo algum sacrilégio e agrido a veia ultranacionalista de alguém se disser que me sinto “luso-açórico-angolano-brasileiro”? Se alguém disser que isso não existe, eu lembro que Fernando Pessoa profetizou que o futuro dos portugueses “é ser tudo”... Por isso, eu sou toda essa miscelânea, qual futura torre de Babel emergente em carne viva e pensante... Escreverei sobre o tudo e o nada, filosofia, educação, espiritualidade, política, poesia, história e... Sei lá que mais? Uma coisa é certa, aqui, não haverá lugar para a baixaria, calúnia, difamação, boataria; a crítica, embora sem ser pessoalizada, certamente, estará presente – às vezes, terei que parar de escrever para secar com a mão o veneno que babarei pelos cantos da minha boca. Afinal, como humanista inveterado, acredito que as pessoas são essencialmente boas e que, mesmo, quando muito imperfeitas e erradas, são sempre perfectíveis, se desejarem assumir essa opção, a qualquer momento.

A terminar, porquê KABIAKA? Assim, me apelidaram na infância os
Kibalas, eles mesmos, aqueles que trabalhavam para o meu pai, brincavam comigo e me ensinaram a comer salalé e a pegar as mais perigosas cobras, desde a mais tenra idade. Kabiá-Kabiaka é o bicho cabeludo que deixa a mão inchada aos que o tocam. Eu acho que as minhas travessuras de kandengue, com menos de seis anos, deixavam alguns adultos bastante incomodados, principalmente, o mais-velho Kimbaça, quando eu puxava a mangueirinha da gasolina para esvaziar o tanque da motorizada dele, ou o mais-velho Angélica, quando eu enchia de gravetos as narinas dos seus leitõezinhos, para grande desespero e chiadeira das criaturinhas... Tinha mesmo que virar engenheiro civil, já que bastavam o meu irmão veterinário nato e o meu pai ganadeiro incorrigível para se interessarem, lá em casa, pelo suave odor de vacas leiteiras e outros bichinhos não menos esquisitos e cheirosos... Aliás, na minha família, todo o mundo é louco (leia-se 'maluco esclarecido') ou idiota (leia-se 'cheio de ideias') e cada qual tem a sua maluqueira ou idiossincrasia, conforme o caso.

Até mais ver!

Kabiá-Kabiaka, a quem o meu pai resolveu denominar tão eruditamente, em meio às etiquetas e respeitabilidades das suas vacas leiteiras, na savana do Catofe, de Lúcio Flávio da Silveira Matos.

ANGOLA


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CATOFE (1)


Catofe em África Posted by Hello

CATOFE (2)


Catofe em Angola Posted by Hello

CATOFE (3)


Região do Catofe Posted by Hello
Nota: O ponto amarelo, 15km a norte, no cruzamento de várias estradas, corresponde à Quibala.

AÇORES


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SANTA E BELA CATARINA


Santa Catarina Posted by Hello

RODEANDO O ATLÂNTICO


Histórias que rodeiam o Atlântico... Posted by Hello