terça-feira, abril 21, 2009

NAÇÕES AFRICANAS SEM ESTADO


De guerrilheiros da libertação a bandidos e piratas.

As últimas semanas trouxeram notícias sobre dois países africanos onde o Estado organizado – “um governo, um povo, um território” – é apenas uma quimera. Trata-se da Guiné-Bissau e da Somália.

Na Guiné-Bissau, os assassinatos do Chefe das Forças Armadas, no domingo, e do Presidente da República, em retaliação, demonstraram que a ação política se mistura frequentemente em África com a selvageria. Realmente, não houve em Bissau um golpe de estado como algumas notícias chegaram a difundir, antes, um acerto de contas entre duas quadrilhas – a do presidente e a do chefe da tropa.     

Hoje, a Guiné-Bissau é o quinto na lista dos países mais pobres do planeta. Seu principal produto oficial é a castanha-de-caju, mas a verdadeira riqueza está na utilização do país como entreposto para a cocaína que flui da América do Sul para a Europa e também para a heroína que a Ásia exporta para os Estados Unidos. O tráfico de drogas já deu à Guiné-Bissau um título inédito, revelado em relatório de 2009 do Departamento de Estado americano: o de primeiro narcoestado do planeta. Efetivamente, a Guiné-Bissau é somente uma nação ou um país sem Estado, portanto, sob o domínio completo do caos político e social, embora a imprensa portuguesa e angolana se esforce por fazer crer o contrário.

Na outra costa africana, a Somália é a primeira colocada na lista dos países falidos, uma terra miserável, sem lei, nem governo. Em sua maioria, a população é nômade e pastoril, sob a ameaça contínua da fome. Três milhões de somalis – cerca de 40% da população – dependem totalmente da ajuda humanitária internacional para sobreviver. O país tornou-se independente em 1960, bem antes da auto-proclamação da independência da Guiné-Bissau em 1973, todavia desde 1991, não conhece o que é um governo central. O território somaliano foi distribuído por clãs e grupos rivais. Agora, o sul está nas mãos de milícias islâmicas inspiradas no Talibã e duas províncias do norte se declararam estados independentes, embora não sejam reconhecidos por nenhum país. Forças da ONU e da União Africana em missão de paz não se arriscam a ultrapassar os limites da capital, Mogadíscio.

A Somália tem atualmente como sua principal atividade econômica a pirataria, podendo ser classificado como um estado pirata, à semelhança dos antigos estados piratas da costa berbere – Marrocos, Argélia e Tunísia – por três séculos, até 1830, quando a França conquistou a Argélia. O litoral da Somália é a região do mundo mais perigosa para a navegação marítima, concentrando um terço de todos os ataques de piratas efetuados no mundo. No início, os piratas somalis eram pescadores que encontraram na pilhagem ainda incipiente uma oportunidade de riqueza fácil; depois, empresários e políticos locais entraram com o dinheiro para a compra de barcos e armas em troca de uma parcela do lucro; agora, os piratas emprestam dinheiro e financiam os senhores de guerra na Somália.

Eyl e Harardere são as duas principais cidades que servem de base para as operações de pirataria somaliana; nelas, os piratas desfilam em carrões e mandam construir mansões com vista para o mar. O lucro da pirataria é altíssimo. Em 2008, os piratas somalis faturaram 150 milhões de dólares em resgates – dez vezes o total de doações internacionais recebidas pela Somália. Em suma, a ostentação pirata contrasta com a pobreza geral do país.  

A maior ironia sobre a Guiné-Bissau e a Somália é que elas são exemplos acabados das últimas consequências da aplicação do "socialismo científico" em África, com regimes pró-soviéticos que se instalaram nesses países por mais de 20 anos após a tão almejada independência dos seus colonizadores europeus.

Um grande abraço do Kabiá-Kabiaka.

domingo, abril 12, 2009

QUEM TEM RAÇA É CACHORRO!


O Brasil é o país onde a maioria da população, ao ser perguntada sobre a sua cor, responde simplesmente:

"Moreno".

A resposta sugere que o grosso da população brasileira não tem a certeza sobre a cor da sua pele, nem se interessa em sabê-lo, porque não considera isso muito importante; todavia, o atual governo federal esmerou-se em parir uma ideossincrasia com a criação de um órgão ministerial com o título pomposo de "Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial", para gáudio dos amigos a quem arranjou mais uns encostos empregatícios no aparelho estatal, e estupefacção ou apreensão dos opositores, e brasileiros em geral, que têm assistido à criação do racismo por via institucional num dos países menos racistas do mundo, ou, com toda a certeza, muito menos racista do que os países onde o atual governo brasileiro tem buscado inspiração para as suas desastradas medidas de "Ação Afirmativa".

Assim, o chefe do governo na sua costumeira verborragia comicieira, que encanta os seus mais diletos apaniguados, tem culpado genericamente a "elite branca" nacional pelos males do país e a "gente de pele clara e olhos azuis" dos países do norte pela recente crise econômica mundial, esquecendo que os acusados também são os principais agentes do desenvolvimento brasileiro e mundial. 

Enquanto a demagogia corre solta, a sua inútil "Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial", apenas, se destacou pelo uso indevido do cartão de crédito corporativo em compras de "Free-Shop", em aeroportos, ou no "Bar Amarelinho", no Rio de Janeiro, em benefício de uma secretária-ministra já demitida. Também, as leis aprovadas no Congresso Nacional visam objetivos exatamente contrários dos que dizem pretender atingir, isto é, criam "cotas raciais" que conferem a pretensos brasileiros negros - deixando exclusivamente a estes o direito de se definirem como tal - privilégios no mercado de trabalho, universidades e concursos públicos, em detrimento dos brasileiros que se definem como brancos ou ameríndios.

O advogado negro José Roberto Militão chegou a escrever no jornal "O Estado de S. Paulo":

"Os defensores das leis raciais ludibriam a boa fé alegando que cota racial é ação afirmativa. Ação afirmativa, de fato, é outra coisa: é a efetiva atuação da autoridade para coibir a discriminação contra minorias e multiplicar oportunidades, sem criar cotas, exigir reparações pelo passado ou restabelecer diferenças de direitos. Ao Estado cabe atuar para destruir a crença em raças. Leis raciais não servem para a redução das desigualdades entre brancos e pretos, pois atacam os efeitos, mas aprofundam as causas".

Depois do esclarecimento sábio do Dr. José Militão, um dos potenciais beneficiários das leis raciais do atual governo, concluimos que essas iniciativas induzem ao perigo de se passar da "distinção" à "divisão", o que está na contra-mão da integração harmoniosa das múltiplas origens da população brasileira.

Para concluir, nada melhor do que a frase do escritor baiano João Ubaldo Ribeiro: quem tem raça é cachorro!

Um grande abraço do Kabiá-Kabiaka

sábado, abril 11, 2009

DE SETE ORELHAS A MANUEL DAS CURVAS – Parte 2

O Manuel das Curvas ou “Manel das Curvas” era uma das figuras mais castiças da nossa aldeia do Katofe. Digamos que sem ele o Katofe seria uma incompletude iconográfica. Ele certamente era um dos principais responsáveis pela imagem predominante do Katofe que se gravou na mente de um camionista que parava frequentemente num dos bares para almoçar e que atirou a seguinte máxima:

-        Quando se passa durante a semana no Katofe quase não se vêem açorianos, mas no domingo ou durante as Festas do Espírito Santo, principalmente, quando há uma briga com alguém de fora, eles parece que saem do meio do capim como se fossem chineses.

Realmente, o Manel das Curvas era um daqueles que, à semelhança do Sete Orelhas, “pagava um boi para não entrar na briga e uma boiada para não sair”, sobretudo quando vislumbrava alguma oportunidade de atuar como justiceiro, todavia sem chegar ao extremo de arrancar as orelhas dos adversários, pois ele achava que pegar qualquer instrumento além dos próprios punhos para dirimir as desavenças era lutar “à falsa fé”, para usar a sua própria expressão. Outra atitude que ele designava por falsa fé era um dos contendores iniciar a luta de repente sem uma troca de palavras preparatórias ou algum ritual prévio que usava desde as lutas de escola, que era, por exemplo, passar a ponta do indicador na ponta do nariz do outro.

O Manel das Curvas recebera o nome de batismo de Manuel Vitorino Nunes, na sua freguesia do Topo, na Ilha de S. Jorge, Açores. O apelido vinha-lhe dos primeiros tempos de Angola, dado por açorianos e kimbundus, que se divertiam ao vê-lo dar as primeiras andanças de bicicleta em curvas sucessivas, para um lado e para outro, para assegurar o equilíbrio em avanço lento. Quando chovia, as poças que predominavam nas principais ruelas do Katofe, tornavam a observação do Manel da Curvas no domínio da bicicleta ainda mais divertida.  Com o tempo ele se tornou um exímio ciclista como todos os açorianos que na sua chegada ao Katofe adotaram a “chica”, como se dizia em Angola, por parceira preferida de viagem.

O Manel das Curvas tinha um nariz adunco, usava o cabelo apartado com um risco à direita e penteava para cima e para a esquerda as melenas com brilhantina ou bem molhadas e untadas levemente com sabão, para não caírem. Quando a franja secava, então, ficava solta ligeiramente para a esquerda e a encobrir parte da testa. Na frente das orelhas, o cabelo bem aparado crescia para baixo em patilhas ou suíças que certamente acertava frequentemente com o aparelho de barbear. O rosto era assimétrico e contribuía para destacar essa característica o afundamento de uma das maçãs do rosto, relativamente à outra, com certeza, como recordação de uma das suas lutas menos gloriosas. A completar a descrição dos traços mais marcantes que me pairam na memória, resta a boca ligeiramente torta, com um canto mais rebaixado, quiçá pelo hábito de manter ali um cigarro quase sempre aceso. Das suas marcas que mais me comoviam era ouvi-lo falar da sua filha mestiça que procurava proteger com muito carinho e que chegou a levar para Portugal, na sua saída de Angola, em 1975.

O Manuel gostava de recordar algumas das suas lutas e render aos adversários as homenagens que ele achava mais merecidas. Uma das descrições mais divertidas de ouvir era a que ele fazia de uma luta que teve com o Mendonça; estavam a construir uma ponte perto da chitaca do tio, António Vitorino Nunes, quando se travaram de razões, mas considerou a luta empatada porque conseguiu derrubar o adversário no chão, mas ao tentar esmurrar-lhe a cabeça, “o Mendonça driblava os murros como se fosse um melro ou um tintilhão”, os pássaros que ele mais recordava dos tempos de infância, que tremulavam a cabeça para um lado e outro, alternadamente. Disse que no mesmo local lutou com o Velho Ernesto Faustino, mas a batalha teve que ser suspensa porque conseguiu colocar o adversário dentro do riacho e este teve um princípio de “congestão”. Aliás, o Manel das Curvas gostava de afirmar à boca cheia, para quem quisesse ouvir, que não tinha medo de nenhum Pascoal (Faustino), apesar dos Pascoais serem afamados em luta desde os tempos de juventude na Ilha de S. Jorge, porque sempre que lutou com um Pascoal este sempre batia primeiro “à falsa fé”. Esta declaração valeu-lhe depois uma dura punição, como se verá mais adiante.

A luta que assisti por inteiro do Manel das Curvas foi com o Rabaça. À época o Rabaça, um rapaz beirão, chegado há pouco tempo de Portugal, trabalhava na loja nos baixos da casa do Velho Kimbaça, o Sr. Emílio Dias. A loja do meu pai ficava bem ao lado. Acontece que o Manel das Curvas estava na nossa loja e viu que o ajudante do Rabaça conseguiu persuadir uma cliente que já estava a trocar o seu milho na nossa loja a se mudar para a loja do lado. Então, o Manel das Curvas não achou essa atitude do rapaz muito elegante e avisou o Rabaça que iria ajustar as contas com o rapaz no fim do serviço, pois já era fim de tarde. Ocorreu que o ajudante do Rabaça conseguiu escapar para a sanzala no fim do serviço ou antes, sem ser visto pelo Manel das Curvas. No fim do expediente, estava montado o cenário completo para o Manel das Curvas ajustar as contas com o próprio Rabaça que foi acusado de encobrir a fuga do seu ajudante.

O Manel esperou que o Rabaça fechasse a loja e chamou-o para conversar na eira, na frente da casa do Sr. Emílio. No meio da discussão, o Manel começou a passar a ponta do indicador na ponta do nariz do Rabaça e este iniciou a luta atirando-se ao desafiante como se fosse um galo de briga. Após a troca de uns murros e rasteiras, com o Rabaça dominado debaixo do Manel, entrou em ação a turma do deixa disso e o Rabaça acabou com uns leves arranhões e um pequeno hematoma no rosto. Então, com os dois em pé, um de frente para o outro, o Manel disparou a sua sentença final:

-        Isto é só para tu saberes que um estransmontano nunca brinca com um açoriano! Ouviste Lambáça?

Quando recordo essa luta do Manel das Curvas, nunca deixo de rir, principalmente, por causa daquela declaração final que ficou gravada definitivamente na minha memória. Uns meses depois na hora da missa, no bar do Branco, onde o Rabaça foi trabalhar, o Manel fez com ele as pazes.

Em certo baile na Casa do Espírito Santo, o Manel das Curvas resolveu aparar umas arestas com um pessoal de fora da terra... A dado momento, eu vi o Velho João Faustino vir em disparada, o Manel das Curvas tentou fugir por uma das saídas do recinto que dava para um corredor, mas encontrou a porta fechada; o Velho João Faustino disparou no Manel uns canhotos certeiros, até que este se desvencilhou debaixo e conseguiu escapar para a rua, algo contundido. No domingo seguinte, vimos o Manel com o braço direito pendurado com uma faixa branca e alguém lhe disse:

-        Ó Manel, hoje, vieste á missa de gravata?!

-        Nunca nenhum Pascoal me bateu que não fosse à falsa fé – respondeu o Manel das Curvas, que continuou fiel à sua tese sobre a bravura dos Pascoais.

Na continuidade da conversa, o Manuel das Curvas resolveu filosofar como um velho que conhecera no Topo, segundo a sua habitual tirada:

-        O que interessa é acordar com os pés quentes...

A verdade é que numa das minhas visitas aos Açores, bem antes de vir para o Brasil, soube que o Manuel das Curvas abatido pela tristeza do exílio africano na sua freguesia natal, logo após a descolonização, resolveu desistir de acordar com os pés quentes e enforcou-se. Triste sina de um amante da luta que desistiu de lutar pela vida...   

A todos os que me lêem,um grande abraço do Kabiá-Kabiaka.

sexta-feira, abril 10, 2009

DE SETE ORELHAS A MANUEL DAS CURVAS – Parte 1

Quando li pela primeira vez as aventuras do “Sete Orelhas” pensei em fazer umas correlações com algum personagem do Katofe que me trouxesse à memória cenas interessantes presenciadas durante a juventude na Décima Ilha dos Açores plantada na savana do centro do Kwanza Sul-Angola. Então, me lembrei do Manuel das Curvas. Mais adiante serão discernidas as razões da relação estabelecida.

Sete Orelhas era o apelido de Januário Garcia Leal, dado por razões que já deduzirão a seguir. Todavia, antes de qualquer julgamento pré-concebido por alguém que já tenha lido sobre ele, digo que o que mais me chamou a atenção na sua história foi o seu íntimo desejo de justiça, principalmente, sempre pronto a pagar “um boi para não entrar na briga e uma boiada para não sair” – como diz o mais legítimo gaúcho dos Pampas – em defesa de alguém que considerava injustiçado, aliás, como o nosso Manuel das Curvas das baixas katofianas.

O Sete Orelhas descendia de uma laboriosa família açoriana, com raízes genealógicas mais remotas no casal Diogo Rodrigues e Bárbara Duarte das freguesias de S. Salvador e Nossa Senhora das Angústias, na Ilha do Faial, onde Bárbara faleceu em 08/08/1667. Diogo Rodrigues e Bárbara Duarte tiveram os filhos Francisco Rodrigues e Ana Garcia; por sua vez, Ana Garcia casou com Mateus Luís em 20/06/1664 na Matriz da Vila da Horta, e desse casamento nasceram vários filhos, entre os quais se contaram João Garcia Pinheiro e Diogo Garcia que na década de 1720 demandaram terras brasileiras, mais concretamente de Minas Gerais, e dos quais resultou vasta descendência nestas bandas do hemisfério sul.

O pai de Januário Garcia Leal, o “Sete Orelhas”, chamava-se Pedro Garcia Leal e foi fazendeiro e comerciante na localidade de Talhados, que hoje corresponde ao município de S. João Batista, no Estado de Minas Gerais. Januário seguiu o exemplo do pai e também se estabeleceu como pacato fazendeiro em terras herdadas na mesma localidade mineira. Em 14/11/1801, foi nomeado para o cargo de Capitão de Ordenanças do Distrito de S. José e Nossa Senhora das Dores de Minas Gerais; a Capitania de Ordenança era uma organização da população civil, de caráter militar, para a defesa local em caso de ataque inimigo. Nos anos 1800, Minas Gerais já vivia o final do ciclo do ouro com o concomitante aumento de crise social, criminalidade e outros problemas que o decadente aparato repressivo colonial não tinha eficiência para resolver.

No contexto sócio-econômico da época a ação de Januário Garcia Leal como Capitão de Ordenanças foi muito difícil e teve o teste mais difícil já no ano de 1802, ou seja, no primeiro ano do cargo. Como resultado de uma briga de terras, o seu irmão João Garcia Leal foi barbaramente assassinado na localidade de São Bento Abade por sete irmãos, filhos de um vizinho confrontante. João Garcia Leal foi amarrado nu a uma árvore pelos seus sete algozes que retiraram lentamente a pele da vítima, antes do golpe final de misericórdia. O local desse assassinato é chamado ainda hoje de “Tira Couro”.

Como ocorre ainda hoje em plagas brasileiras, as autoridades policiais e a justiça mostraram-se pouco eficazes na punição dos assassinos de João Garcia Leal. Então, Januário movido pela sede íntima de justiça decidiu associar-se ao seu irmão caçula, Salvador Garcia Leal, e ao seu tio, Mateus Luís Garcia, os três capitães de milícia, que formaram um pequeno grupo armado para vingar o assassinato do seu parente.

Januário Garcia Leal, como comandante do grupo de justiceiros, decidira decepar a orelha direita de cada criminoso caçado, antes da execução à bala. Só depois de decepada a orelha do último criminoso é que Januário Garcia Leal deu-se por satisfeito, tendo dado por vingado o assassinato do seu irmão. Reza a história que Januário juntou as sete orelhas num macabro colar que exibia triunfalmente como um troféu de caça, daí ter recebido o apelido de “Sete Orelhas”.

Nas suas andanças vingadoras, o grupo de Januário Garcia Leal foi considerado pela Corte de D. João VI, o Príncipe Regente de Portugal, como uma ameaça à Sagrada Régia Autoridade, por isso, foi ordenada a sua perseguição implacável por milicianos especialmente designados para tal fim. Contudo, Januário e o seu grupo sempre conseguiram driblar a perseguição dos milicianos e o seu paradeiro, a partir da consumação da vingança, passou a ser desconhecido pelas autoridades do Governo da Capitania de Minas Gerais.

Só muito recentemente, em 2006, pesquisas históricas realizadas no Museu Histórico do tribunal de Justiça de Santa Catarina permitiram o esclarecimento quanto ao destino e os últimos tempos da vida do temido “Sete Orelhas”. Conforme essa investigação, aos 18/05/1808, ocorreu na Vila de Lages, no Planalto Sul Catarinense, o trágico falecimento de um mercador daquelas paragens. Realmente, o temido Januário Garcia Leal, como o mais pacato dos açorianos, morreu no exercício da profissão de comerciante em terras catarinenses, onde se refugiou certamente por ter aqui alguns familiares.

O afamado Sete Orelhas morreu devido a um traumatismo – ironia do destino – na região da orelha direita e com fratura exposta do queixo. Segundo a tradição oral, o “Sete Orelhas” teria morrido devido à queda de uma porteira (viga de um portão de fazenda). O Juiz Ordinário da Villa de Nossa Senhora dos Prazeres de Lages mandou lavrar os Autos do Inventário com a seguinte ordem ao Escrivão e Alcaide do juízo local: “dirija-se ao lugar chamado Lavatudo onde consta morrera violentamente o Capitam Januário Garcia Leal que vinha vindo da Villa de Laguna com hua carregação para deixar nesta Villa e ali fara auto de corpo de delito pa servir no conhecimento a cauza da sua morte exzamiando as feridas e machucaduras que tiver e logo passara a fazer um Eventário de todos os seos bens mandando para esso ovir as pessoas que o acompanhavão para se por tudo em seguro deposito the que seos herdeiros venhao procurar seos bens, visto ser homem de diferente districto e Capitania (...)”.

Januário Garcia Leal não viajava só no dia da sua morte. Era acompanhado pelos seus capatazes Francisco Eloi de Souza e António Rodrigues, e ainda “seu fiel preto escravo da Nação Congo”, António. Conforme consta dos autos do processo, o escravo António já trazia consigo uma carta de alforria que lhe fora passada de próprio punho pelo falecido Capitão Januário Garcia Leal. Assim, à época, na Villa de Lages também foi mandada passar ao servente a Escritura de Alforria e Liberdade, uma vez que “o dito Capitam de sua livre vontade deixa forro ao negro Antonio (...) por lhe ter servido e aturado a suas empertinencias sempre com paciência e em tendo servido como bom Escravo”. Podemos dizer agora que o “Sete Orelhas” teve uma premonição do que lhe ocorreria e resolveu fazer justiça ao seu mais fiel servidor.

A todos os que me lêem,um grande abraço do Kabiá-Kabiaka.