sexta-feira, abril 10, 2009

DE SETE ORELHAS A MANUEL DAS CURVAS – Parte 1

Quando li pela primeira vez as aventuras do “Sete Orelhas” pensei em fazer umas correlações com algum personagem do Katofe que me trouxesse à memória cenas interessantes presenciadas durante a juventude na Décima Ilha dos Açores plantada na savana do centro do Kwanza Sul-Angola. Então, me lembrei do Manuel das Curvas. Mais adiante serão discernidas as razões da relação estabelecida.

Sete Orelhas era o apelido de Januário Garcia Leal, dado por razões que já deduzirão a seguir. Todavia, antes de qualquer julgamento pré-concebido por alguém que já tenha lido sobre ele, digo que o que mais me chamou a atenção na sua história foi o seu íntimo desejo de justiça, principalmente, sempre pronto a pagar “um boi para não entrar na briga e uma boiada para não sair” – como diz o mais legítimo gaúcho dos Pampas – em defesa de alguém que considerava injustiçado, aliás, como o nosso Manuel das Curvas das baixas katofianas.

O Sete Orelhas descendia de uma laboriosa família açoriana, com raízes genealógicas mais remotas no casal Diogo Rodrigues e Bárbara Duarte das freguesias de S. Salvador e Nossa Senhora das Angústias, na Ilha do Faial, onde Bárbara faleceu em 08/08/1667. Diogo Rodrigues e Bárbara Duarte tiveram os filhos Francisco Rodrigues e Ana Garcia; por sua vez, Ana Garcia casou com Mateus Luís em 20/06/1664 na Matriz da Vila da Horta, e desse casamento nasceram vários filhos, entre os quais se contaram João Garcia Pinheiro e Diogo Garcia que na década de 1720 demandaram terras brasileiras, mais concretamente de Minas Gerais, e dos quais resultou vasta descendência nestas bandas do hemisfério sul.

O pai de Januário Garcia Leal, o “Sete Orelhas”, chamava-se Pedro Garcia Leal e foi fazendeiro e comerciante na localidade de Talhados, que hoje corresponde ao município de S. João Batista, no Estado de Minas Gerais. Januário seguiu o exemplo do pai e também se estabeleceu como pacato fazendeiro em terras herdadas na mesma localidade mineira. Em 14/11/1801, foi nomeado para o cargo de Capitão de Ordenanças do Distrito de S. José e Nossa Senhora das Dores de Minas Gerais; a Capitania de Ordenança era uma organização da população civil, de caráter militar, para a defesa local em caso de ataque inimigo. Nos anos 1800, Minas Gerais já vivia o final do ciclo do ouro com o concomitante aumento de crise social, criminalidade e outros problemas que o decadente aparato repressivo colonial não tinha eficiência para resolver.

No contexto sócio-econômico da época a ação de Januário Garcia Leal como Capitão de Ordenanças foi muito difícil e teve o teste mais difícil já no ano de 1802, ou seja, no primeiro ano do cargo. Como resultado de uma briga de terras, o seu irmão João Garcia Leal foi barbaramente assassinado na localidade de São Bento Abade por sete irmãos, filhos de um vizinho confrontante. João Garcia Leal foi amarrado nu a uma árvore pelos seus sete algozes que retiraram lentamente a pele da vítima, antes do golpe final de misericórdia. O local desse assassinato é chamado ainda hoje de “Tira Couro”.

Como ocorre ainda hoje em plagas brasileiras, as autoridades policiais e a justiça mostraram-se pouco eficazes na punição dos assassinos de João Garcia Leal. Então, Januário movido pela sede íntima de justiça decidiu associar-se ao seu irmão caçula, Salvador Garcia Leal, e ao seu tio, Mateus Luís Garcia, os três capitães de milícia, que formaram um pequeno grupo armado para vingar o assassinato do seu parente.

Januário Garcia Leal, como comandante do grupo de justiceiros, decidira decepar a orelha direita de cada criminoso caçado, antes da execução à bala. Só depois de decepada a orelha do último criminoso é que Januário Garcia Leal deu-se por satisfeito, tendo dado por vingado o assassinato do seu irmão. Reza a história que Januário juntou as sete orelhas num macabro colar que exibia triunfalmente como um troféu de caça, daí ter recebido o apelido de “Sete Orelhas”.

Nas suas andanças vingadoras, o grupo de Januário Garcia Leal foi considerado pela Corte de D. João VI, o Príncipe Regente de Portugal, como uma ameaça à Sagrada Régia Autoridade, por isso, foi ordenada a sua perseguição implacável por milicianos especialmente designados para tal fim. Contudo, Januário e o seu grupo sempre conseguiram driblar a perseguição dos milicianos e o seu paradeiro, a partir da consumação da vingança, passou a ser desconhecido pelas autoridades do Governo da Capitania de Minas Gerais.

Só muito recentemente, em 2006, pesquisas históricas realizadas no Museu Histórico do tribunal de Justiça de Santa Catarina permitiram o esclarecimento quanto ao destino e os últimos tempos da vida do temido “Sete Orelhas”. Conforme essa investigação, aos 18/05/1808, ocorreu na Vila de Lages, no Planalto Sul Catarinense, o trágico falecimento de um mercador daquelas paragens. Realmente, o temido Januário Garcia Leal, como o mais pacato dos açorianos, morreu no exercício da profissão de comerciante em terras catarinenses, onde se refugiou certamente por ter aqui alguns familiares.

O afamado Sete Orelhas morreu devido a um traumatismo – ironia do destino – na região da orelha direita e com fratura exposta do queixo. Segundo a tradição oral, o “Sete Orelhas” teria morrido devido à queda de uma porteira (viga de um portão de fazenda). O Juiz Ordinário da Villa de Nossa Senhora dos Prazeres de Lages mandou lavrar os Autos do Inventário com a seguinte ordem ao Escrivão e Alcaide do juízo local: “dirija-se ao lugar chamado Lavatudo onde consta morrera violentamente o Capitam Januário Garcia Leal que vinha vindo da Villa de Laguna com hua carregação para deixar nesta Villa e ali fara auto de corpo de delito pa servir no conhecimento a cauza da sua morte exzamiando as feridas e machucaduras que tiver e logo passara a fazer um Eventário de todos os seos bens mandando para esso ovir as pessoas que o acompanhavão para se por tudo em seguro deposito the que seos herdeiros venhao procurar seos bens, visto ser homem de diferente districto e Capitania (...)”.

Januário Garcia Leal não viajava só no dia da sua morte. Era acompanhado pelos seus capatazes Francisco Eloi de Souza e António Rodrigues, e ainda “seu fiel preto escravo da Nação Congo”, António. Conforme consta dos autos do processo, o escravo António já trazia consigo uma carta de alforria que lhe fora passada de próprio punho pelo falecido Capitão Januário Garcia Leal. Assim, à época, na Villa de Lages também foi mandada passar ao servente a Escritura de Alforria e Liberdade, uma vez que “o dito Capitam de sua livre vontade deixa forro ao negro Antonio (...) por lhe ter servido e aturado a suas empertinencias sempre com paciência e em tendo servido como bom Escravo”. Podemos dizer agora que o “Sete Orelhas” teve uma premonição do que lhe ocorreria e resolveu fazer justiça ao seu mais fiel servidor.

A todos os que me lêem,um grande abraço do Kabiá-Kabiaka.