terça-feira, julho 15, 2008

FILOSOFIA DAS BAIXAS DO KATOFE

Orquídea da savana do Katofe (Foto tirada e gentilmente cedida por Albano Faustino)
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A minha primeira lição de filosofia eu tive – melhor, vivi – nas baixas do meu Katofe...

Era nos tempos em que, bastas vezes, fugi à vigilância do “Capitão da Malta” – precisamente, a minha mãe – para ir tomar banho na vala que tinha servido à rega do arroz em escassos anos de experimentação agrária de açorianos que fugiram à teimosia da sua vocação pecuária de domar vacas leiteiras, ainda, muito gentias. A vala ficava no fundo da baixa, é mesmo, aquela bem na frente da igreja e da Casa do Divino Espírito Santo, do outro lado da estrada alcatroada Nova Lisboa – Luanda, a uns 2 ou 3 km da minha casa, que as minhas pernas curtas e lestas galgavam velozmente, para chegar bem perto do rio Katofe, onde também havia uma fonte de água cristalina que abastecia continuamente a vala que ia escoando lentamente para o rio. Ali me banhava nos meus cinco a sete anos, desde o início da tarde até que a trovoada me alertava sobre a chegada célere da chuva em cascata, esta sim a única que me enxotava rapidamente para catar as roupas pousadas na primeira touça de capim e divergir numa carreira até, a uns quinhentos metros, às kubatas da família do Velho Kibuba, de quem um dia vos falarei em maiores detalhes, o alfaiate mulato da firma Oliveira & Dias e, mais tarde, do comércio do Kilamba Vicente. Por vezes, a trovoada e a chuva só davam uma folga ao cair da noite, que naquelas paragens tropicais chegava cedo, pelas 18 horas e pouco. Quando isso acontecia, geralmente, era conduzido de volta à morada paterna pelos filhos do Velho Kibuba, o Carlos e o Moreira, que eram meus professores do pouco kimbundu que aprendi e companheiros inseparáveis de aventuras no desbravar da savana, principalmente, na meticulosa arte de esfolar sapos, com lâmina Nacet, e encher as respectivas tripas com areia para comercializar como chouriço (se na propaganda de rádio dos adultos a lâmina Nacet cortava até jacaré, por que não poderia ser utilizada para esfolar sapos?); ao chegar a casa, geralmente, era recebido pelo Mais-Velho com um olhar que eu só identifiquei mais tarde como misto de sebastianista, por esperar ansiosamente “O Desejado”, e de pai do fadado desde o berço a eterno filho pródigo...

Naquelas baixas, o flutuar das nuvens, o farfalhar das folhas, o sibilar do vento, o dançar do capim, o refrescar da chuva, o escaldar do calor, o tiritar do cacimbo, o rumorejar do rio, o fumegar das queimadas, o coaxar dos sapos, o cantar do cuco, o esvoaçar das andorinhas,..., ensinaram-me a quintessência do Dharma do Buddha: “Todas as coisas são impermanentes”, ou seja, o que aqui encontramos de mais permanente é a impermanência; e, também, do Evangelho do Cristo: “Vejam os passarinhos que voam pelo céu: eles não semeiam, não colhem, nem guardam comida em depósitos. No entanto, o vosso Pai , que está no céu, dá de comer a eles. Será que vocês não valem muito mais do que os passarinhos? E por que vocês se preocupam com roupas? Vejam como crescem as flores do campo: elas não trabalham, nem fazem roupas para si mesmas. Mas eu afirmo a vocês que nem mesmo Salomão, sendo tão rico, usava roupas tão bonitas como essas flores. É Deus quem veste a erva do campo, que hoje dá flor e amanhã desaparece, queimada no forno”.

Entre o Buddha e o Cristo, veio Heráclito de Éfeso (540 a.C. – 470 a.C.) a proclamar: “Tudo flui, nada permanece”. E, bem depois, Cecília Meireles (1901-1964) com “O sou e não sou no que estou sendo”. E, Rubem Alves (1933-) com a incontestável sentença: “Todo ser é um permanente deixar de ser”.

E é assim que eu rememoro a savana do Katofe. Sou Katofiano – gosto mais que de katofense, porque Katofiano rima com Açoriano – num permanente deixar de ser. Sou Katofiano e não sou no que estou sendo. A cada hoje brotam da minha mente flores katofianas que em cada amanhã fenecem. Tudo flui e nada permanece e me lembro que todas as coisas são impermanentes...

Realmente, a morte faz parte da essência da vida, porque a nossa vida acontece a morrer continuamente. É como o rio Amazonas que se desvanece no infinito do oceano, apesar da sua extensão gigantesca de 6.992 km das cabeceiras do rio Apurimac, no Peru, à foz no litoral brasileiro, que supera o comprimento do rio Nilo, contrariamente ao que aprendi no Colégio Alexandre Herculano, em Nova Lisboa; apesar da sua profundidade de 100 metros, maior que a altura do orgulho americano simbolizado pela Estátua da Liberdade; apesar da sua maior largura que é de 50 km, bem próxima do comprimento do Canal da Mancha; apesar dos 100 milhões de toneladas de sedimentos despejados mensalmente no mar, o que é só um volume bem similar ao do Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro; apesar do seu caudal de 200 mil metros cúbicos por segundo, que daria para encher a Baía da Guanabara em apenas 4 horas. Apesar de toda essa grandeza, que as mais potentes imagens de satélite ainda não conseguem divisar e detalhar inteiramente, o principal objetivo do Amazonas é perder-se no oceano, este, tantas vezes, usado como símbolo da Grande Vida, nosso maior alvo.

Em suma, por mais produtivo e intenso que seja o percurso da minha vida, assumo tranquilamente que ela é como a chama da vela que se vai queimando. E vivo a feliz certeza que a cera que me resta é algo menor, mas melhor, do que a cera que se queimou!
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Depois disto, me lembrei de algo que escrevi há quinze anos, já a residir em Blumenau-SC, na grande curva do rio Itajaí Açu, em 19/03/1993, juntamente com um pensamento de Emily Brontë:
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O SER
Onde achar o norte,
Se desnorteado procuro
Fora de mim
Um rumo,
Um sentido,
Uma resposta,
Um Fim?...
Olhei para o EU profundo,
Bem no fundo, o Infinito
Da interioridade do meu SER:
Eis o manancial de águas a sorver,
O espelho em que me reflito,
Enfim,... O meu Mundo!
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“Tudo o que importa é que em torno
Pairam perigos, dores e trevas,
Se na amplidão do nosso SER
Não há um céu límpido e claro”.

Emily Brontë (1818-1849).
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Um grande abraço do Kabiá-Kabiaka.