segunda-feira, novembro 26, 2018

AINDA A PROPÓSITO DOS BILHANOS

Uma música para acompanhar a leitura:

Em 29 de fevereiro de 2016 ocorreu um evento para o qual não tinha preparado devidamente a minha mente, nos campos racional e emocional: o passamento do meu pai Kilamba Vicente; nunca estamos preparados para a partida dos nossos pais! Após uma visita à ilha Terceira, Açores, em julho de 2015, fui impactado no prazo de um mês pela partida da minha mãe, em 29/08/2015, e exatos seis meses adicionais pela do meu Kilamba, com 95 anos; aliás, não é segredo para os mais próximos, com quem eu mantinha um vínculo afetivo mais intenso.

Figura 1- O meu Kilamba nas visitas de 2012, em cima, e de 2015, em baixo.

Nesse nosso último reencontro físico, um belo dia, ele surgiu com dois grandes envelopes cheios de papéis e me disse: “acho que só tu poderás aproveitar isto”. Comecei a folhear os pergaminhos bem amarelados pelo longo arquivamento no ambiente úmido das ilhas atlânticas ou de paragens pretéritas e verifiquei serem essencialmente constituídos por discursos, relatórios e estatutos referentes à colonização da décima ilha dos Açores, nas baixas e savanas do Catofe, além de artigos com estórias e polêmicas acariciadas pelo rijo colono africano, sempre com o coração repartido entre as Ilhas do Mar Poente e o Continente Negro. Entre os papéis havia até um projeto sobre a épica diáspora açoriana, descrita em ritmo de romance e ambientada em três continentes, por isso, sob o título “Gente de Coração Repartido” e o subtítulo “Entre os Açores, Angola e o Mundo”. Realmente, o sonho comandou a sua vida e como escreveu Goethe: “somos moldados e guiados pelo que amamos”.
Aqueles papéis por mim fielmente conservados nos últimos três anos, submetidos a observação silente, repetida vezes sem conta, com a lembrança inevitável das breves palavras da entrega à minha guarda, lançaram-me a responsabilidade de fazer algo que fosse o mais público e perene possível. Então, aqui estou a dar o  primeiro passo com a transcrição dum artigo intitulado “Ainda a propósito dos Bilhanos”, publicado em 3/09/1999, no jornal Correio de São Jorge, na sua página “Palavras ao Vento”. O artigo reflete a boa cepa do meu Kilamba na defesa indefectível do seu povo e da sua terra, em resposta a um outro artigo, assaz pessimista, dum jovem estudante com quem conviveu na época do seu trabalho em part-time, na década de 1990, então, com mais de setenta anos, no Seminário de Angra do Heroísmo, na ilha Terceira.
Figura 2- Uma visão do artigo original.
Segue-se a palavra do autor:
Ainda a propósito dos Bilhanos
Vicente Matos
“Estas mal alinhavadas linhas”, à distância de mais de dois anos – 16/05/97, como o tempo voa! – vêm a propósito do artigo: “S. Jorge era dos bilhanos e ainda vai ficar aos bilhanos”, do meu jovem amigo Paulo Vitorino Fontes, publicado neste mesmo jornal. E digo amigo, pois, apesar da enorme diferença de idades, fomos companheiros – lembras-te Paulo – na luta contra a poeira dos livros velhos e venerandos da Biblioteca do Seminário; e tive imensa alegria ao saber-te cursando Sociologia na Universidade dos Açores; assim como o amigo Mário em Veterinária, em Vila Real, assim como outros, numa forma de enriquecimento pessoal e da nossa amada Ilha de S. Jorge, que disso precisa como de “pão para a boca”!
Ainda antes dos “bilhanos”, devo acrescentar que essa amizade posso chamá-la de geracional, pois já incluiu o avô Vitorino, meu vizinho, o companheiro de brincadeiras e colega na velha Escola das Meninas, onde hoje se situa a Sede da Filarmónica União Popular, sob o comprido mas benévolo ponteiro da famosa Professora D. Maria dos Santos Machado! Mais tarde, fui ainda amigo do avô Antonico; um ror de lembranças nunca esquecidas! Fundas raízes me ligam à terra jorgense!...
Figura 3- A costa sul de S. Jorge vista da Ponta dos Rosais (Foto de José Silveira em passarodeferro.com)

Por isso adorei a crónica do Paulo, pessimismo à parte, e hoje apeteceu-me voltar “à vaca fria”...

De facto, está registada a previsão – com uma variante – atribuída ao Infante D. Fernando, então Donatário dos Açores, como sobrinho e herdeiro do afamado Infante D. Henrique, promotor da descoberta e povoamento das ilhas dos Açores.
Ao Infante D. Fernando, com base na técnica e ciência de então, foi fácil prever que em relativamente poucos anos, ilha tão alcantilada, desbastada de arvoredos, veria a sua terra fértil em pouco tempo despejada no mar profundo e, logo a seguir, abandonada pelos colonos, que seu tio lá mandara desembarcar – uns ricos sesmeiros, a maioria “pau para toda a obra”! E assim a ilha ficaria para os “bilhanos” ou, outra versão, “para as cabras”! Estas animal daninho e resistente; aqueles, suponho quase em extinção, por rarefacção das presas de que se alimentam – os ratos dizimados pelo veneno, os coelhos pela mixomatose, os pintos das nossas avós pelos frangos congelados. Nunca me esqueço da luta quase heroica da minha avó para livrar os seus ricos pintos das garras aduncas dos “bichanos”!
Figura 4- O milhafre, “bilhano” ou “milhano” da Ilha de S. Jorge (Milvus Migrans).
Voltando atrás, as sabenças do Senhor Infante, como a de todos os sábios que não as encaram com a devida humildade científica, goraram-se! Não contou com a teimosia e esperteza dos humanos, que o seu sábio Tio mandara largar ou abandonar, digamos, nas solidões e insularidade da Ilha! Contra a erosão, muito antes dos Americanos descobrirem tão excelente ciência, os diligentes ilhéus inventaram as paredes colossais e a cultura em socalcos, que hoje admiramos do Loural e Portal, entre muitos outros lugares e que sempre me deixaram de “boca aberta”! Descobriram o cesto de tirar terra, que ainda conhecemos, mais tarde a “escrepa” (scraper) chegou até aos nossos dias, conservando a nossa preciosa terra! Não sei ao certo, quando e como, começaram a semear o tremoço, adubo verde; adubos naturais orgânicos, fabricados de “feitos” e bosta de gado. Adquirindo pelo mundo novas plantas, novos frutos: o milho, o inhame, a batata, e tantos outros produtos exóticos! Resistiram à opressão dos capitães móres e quejandos e aos outros “mandares de deus” e da natureza! Subsistiram!... Controlaram os “bilhanos”, as cabras e outras pragas! E multiplicaram-se tanto os danados jorgenses que, em breve, foram obrigados a alistarem-se nas naus de El-Rei e dos mercadores, mais tarde, responderam famílias inteiras, para defenderem, povoando, o Sul do Brasil e o Maranhão, contribuindo, na modéstia da sua densidade demográfica, para o surgimento duma grande nação! “Um quarto de légua em quadra” era “terra quanta queira”!... E, sem nunca abandonarem a terra natal, espalharam-se pelo mundo e pelos oceanos, pela “Terra d’Amerca”, pelo Canadá, e até Angola onde se empenharam em criar a “Décima Ilha”, até que a estupidez e a ignorância dos homens os englobaram numa descolonização racista, que desbaratou até à destruição dos seus filhos e de uma rica e promissora Nação...
Nestes novos tempos, em que a ciência se prepara para destruir ou tornar num paraíso este nosso Universo, será muito mais fácil aos jorgenses – principalmente os jovens – resistirem ao pessimismo, às cabras e aos bilhanos! Basta que a nossa juventude continue a aplicar a sua massa cinzenta, igual senão melhor que a dos outros, com muito de transpiração também, em cursos úteis a S. Jorge, e nisso procurem ser os melhores: os médicos, os veterinários, os sociólogos, os biólogos, os engenheiros, os professores impulsionadores de novas mentalidades, mas também os melhores profissionais de turismo – do urbano ao rural, da pecuária, da agricultura biológica, da pesca desportiva e não só, de música e outra cultura, etc., etc.
Não vos pretendo dar conselhos, apenas lançar reflexões para umas úteis e entusiasmantes férias...
Retoma de forças para um novo ano, colheita de novas informações à vossa disposição, mesmo aí em S. Jorge! E “por todos os santinhos”: não deixem morrer a lagoa de Santo Cristo, porventura o mais atraente – entre muitos – ex-libris de S. Jorge!
Figura 5-Vista da costa norte da Ilha de S. Jorge, com as lagoas da Fajã dos Cubres e da Fajã de Santo Cristo, esta ao fundo.

A terminar, um grande abraço do 
Kabiá-Kabiaka.
Facebook: Lúcio Kabiaka
Twitter: @LucioKabiaka