terça-feira, setembro 11, 2012

O MESTRE JOÃO DA LUZ


Esta é uma homenagem póstuma que rotulo como gratidão a uma das personalidades mais marcantes do nosso Catofe: o Mestre João da Luz.
Lembro-me saudosamente do Mestre João da Luz desde a minha tenra idade, com cerca de cinco ou seis anos. Eu ia à missa nas manhãs de domingo com o meu avô materno ou com o meu pai e via o Mestre João chegar antecipadamente na sua bicicleta, que encostava cuidadosamente no tronco da mulemba que existia no largo frontal à igreja, trazia presa com uma mola de roupa a perna da calça que ficava do lado da corrente da sua bicicleta, para não ficar suja de óleo ou massa lubrificante, e, após guardar o citado apetrecho preservante no bolso, punha-se logo a dar conversa aos mais velhos com um palito ao canto da boca, às vezes um pedacinho de capim seco apanhado na viagem, não para limpar os dentes já suficientemente escovados em casa, mas como simples elemento estético ou amuleto de boa sorte.
Suponho que era tratado por Mestre por ser muito habilidoso nas artes de carpinteiro e pedreiro e, principalmente, como exímio violeiro de “bailes de roda” e “chamarritas” à moda açoriana. Havendo “baile de roda” e “chamarrita”, lá estava ele presente com a sua viola e unhas de metal meticulosamente elaboradas por ele mesmo.
Salvo erro, na casa em que eu cresci e vivi no Catofe, duas poltronas da sala de estar eram de madeira de boa cepa, imune à voracidade xilófaga do salalé, onde sentávamos sobre gordas almofadas bem confeccionadas pela minha mãe na sua Singer de pedal.
Outra obra de realce do nosso mestre catofiano foi o moinho de vento junto à barragem onde gostávamos de ir nadar; ali, dentro do moinho, jovens, de 16 a 20 anos, fizeram pic-nic e depois dançaram em torno da pedra de moer. Quem me lê e participou desse repasto e tarde dançante recorda-se bem do que falo... Sem muitos detalhes, posso assegurar que a música e a dança estavam muito boas e, contrariamente ao que ocorre hoje, a juventude ali presente não consumiu bebida alcoólica ou outras drogas para se divertir. Contudo, o episódio deixou o pai do moinho bem insatisfeito pela profanação da sua consagrada obra, o que o levou a negar-nos a chave para outro evento festivo similar com a sentença: “aquele moinho não é para vocês irem lá fazer poucas vergonhas”. No julgamento ficou decretado o maior choque de gerações da nossa terrinha.
Figura 1- O moinho de vento construído pelo Mestre João da Luz no dia da inauguração.
Eu até apreciava a veia poética das quadras repentistas de “baile de roda” do Mestre João da Luz, embora muita gente pense o contrário por causa de um episódio que eu engenhosamente inventei com dois comparsas para “aperriá-lo”, como se diz em bom brasileiro nordestino. Certa noite de “baile da juventude”, durante as férias grandes, os “velhos” inventaram de impor um intervalo nas nossas danças agarradinhas para a sua rápida “chamarrita” e “baile de roda” cuja cantilena chorada nunca mais acabava; então, como nos tínhamos preparado estrategicamente com umas bombinhas de carnaval, resolvemos soltar duas no meio da roda de baile, através de uma porta que dava para o pátio. Todos os que dançavam na roda deram um pulo de susto, a cantoria parou repentinamente durante alguns segundos e, no meio do pânico instalado, o Mestre João da Luz só suplicava que o ajudassem a encontrar a unha de metal que tinha saltado do dedo. Entre os mais velhos, uns riam e outros mostravam rostos raivosamente indignados. Acho que foi por recordar este episódio que o Mestre António Alves, anos mais tarde no seu exílio da Califórnia, disse: “aqueles rapazes eram uns demoinos, mas a gente era feliz e dava-se bem ali com todos eles”...   
Figura 2- Os bailes agarradinhos da juventude catofiana eram mais animados do que os “bailes de roda” tocados pelo Mestre João da Luz.
As quadras mais famosas do Mestre João da Luz foram recitadas na época da caçada do único leão que apareceu no Catofe. Este acontecimento foi assim descrito pelo meu pai, Vicente Teixeira de Matos:
Uma bela noite de luar africano, feiticeiro, a povoação foi acordada por urros tremendos. Não sendo zona de leões, na manhã seguinte verificou-se ter sido atacado um curral perto e morta uma nema (novilha). Só podia ser leão... e alguns caçadores amadores resolveram fazer uma mutala em cima de uma árvore sobranceira ao curral, e ao cair da noite trataram de subir à árvore, o último de "bofes à boca", pois já sentiam uma restolhada!... Seguiu-se uma autêntica fuzilaria e os habitantes saíram à rua a espreitar os resultados da guerra... Em breve chegaria uma carrinha trazendo o leão, bicho imponente, motivo de fotos e falatório!... A fêmea viria a ser envenenada numa fazenda próxima, depois de matar outro bovino. Do episódio ficaram até hoje as tro­vas do poeta popular, mestre de viola e animador de tantas noites de chamarritas e bailhos, mestre João da Luz, há anos falecido na Terceira (Vicente Matos, Revista Atlântida, v. XLVI, p. 77-84).
Aqui, vão as quadras do nosso saudoso mestre catofiano:

O Catofe vai a crescer
desde há vinte e tal anos
e, se ele agora morrer,
ai triste dos açorianos.

Apareceu por cá um leão
que nos fez grande surpresa,
pois com sua pesada mão,
levava tudo à tristeza.

Foi então que cinco açorianos
pensaram em o matar
pois, se não fosse assim, grandes danos
este animal ia causar.

Dirigiram-se ao lugar
com coragem suprema
onde o leão na véspera
matara vaca e nema.

Ele vinha devagar
com seu aspecto de mau
e a gente a aproximar-se
para subir para o pau.

José Edmundo, o primeiro,
João Faustino, a seguir,
o Farias, o terceiro,
e o leão sempre a vir.

Arnaldo e Tibério
também vão pelo pau fora
e o caso ficava feio,
se havia alguma demora...

Apontaram-lhe as carabinas,
três tiros para fora,
pois o leão e seus fins
tiveram pouca demora.

Assim que o leão morreu,
julgamo-nos vitoriosos
e assim ficam a saber
o nome dos corajosos.

Caminhamos com o leão,
pois horas eram vinte,
e teve à exposição
até ao dia seguinte.

Isto não é grande “avantagem”
que se possa dar valor,
gaba-se é a coragem,
pois que nenhum era caçador.

Observação: Estes versos foram enviados ao meu pai pelo meu amigo de juventude João Ernesto Faustino, residente na costa leste dos Estados Unidos da América, com a seguinte nota: “os originais destes versos perderam-se e só foi possível recuperá-los através de António Farias (irmão de José Farias, um dos elementos que participou na caçada), pessoa residente na Califórnia, que nunca esteve em Angola mas decorou estes versos há mais de trinta anos e quando duma viagem a Winnipeg, Canadá, teve a amabilidade de nos recitar os versos numa daquelas noites onde velhos amigos de Angola se reuniram para falar dos bons tempos e jogar uma cartada para matar o tempo”.
Um grande abraço do Kabiá-Kabiaka.
Figura 3- O meu tio José Edmundo da Silveira Matos, um dos caçadores do leão. Mais atrás, à direita, Emílio Dias e meu pai Vicente Teixeira de Matos, de máquina fotográfica.