quinta-feira, outubro 11, 2007

MUDAM OS TEMPOS...

Antes...

E depois!...

Tirando a montanha e o céu límpido, o resto só reflete as obras dos libertadores em contraste às obras deixadas pelos colonizadores da Kibala - não colonialistas!
É caso para recitar a canção açoriana:

Mudam os tempos
E as vontades...
Mudam os ventos, pensamentos e vaidades.
Tudo passou,
Quase esqueceu,
E o que ficou
marcas deixou
Do que morreu!

Um grande abraço do Kabiá-Kabiaka.

domingo, setembro 30, 2007

ACORDO ORTOGRÁFICO

Recentemente, ressuscitou a temática do decantado Acordo Ortográfico entre os países lusófonos, visando tornar a Língua Portuguesa – a minha Pátria é a Língua Portuguesa, como já disseram Guerra Junqueira e Fernando Pessoa – uniforme, pelo menos na escrita, em todo o mundo, uma vez que ela assume diversos matizes quanto à fala e significado de certas expressões, como adiante elucidarei.
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Eu penso que existe mais unidade na diversidade linguística popular do que na unicidade imposta por meia dúzia de iluminados, todavia existem – como sempre – grandes interesses econômicos, aquém e além Atlântico, que tornam conveniente esse acordo, basta lembrar as possibilidades de venda dos livros didáticos brasileiros nas escolas dos PALOP ou o velho sonho português de ver a língua lusíada ser adotada como uma das línguas oficiais de trabalho da ONU.

Lembro que a tentativa de celebração do Acordo Ortográfico, entre Portugal, Brasil e PALOP, já é anterior a fevereiro de 1987, quando eu demandei definitivamente plagas tupiniquins. Nessa época, o dito acordo foi muito atacado pelos puristas lusos, a tal ponto que a sugestão de abolir o acento na antepenúltima sílaba das palavras proparoxítonas recebeu um texto num jornal, mais ou menos assim, quanto a um diálogo em que um amigo perguntava a outro se tinha “cágado” em casa:

- Você tem cagado no jardim?
- Não, eu tenho cagado em casa.
- Onde você tem cagado?
- Eu tenho cagado na banheira.


Claro, imagino que esses equívocos foram saneados, ao fim de mais de vinte anos de estudo e debate, do acordo que dizem ser agora para valer. Porém, o Acordo Ortográfico continua ter os seus detratores em todos os países lusófonos com a principal argumentação de que o português que se fala e vive em Portugal, Brasil e Angola, por exemplo, não é o mesmo.

Efetivamente, assim é, sobretudo, para expressões e interpretações de uso popular. Já nos primeiros anos de escola aprendi que havia palavras de português que eram de origem popular e outras de origem erudita. Por que é que a origem popular de certas palavras da nossa língua só pode ser válida se ocorrer no “jardim à beira-mar plantado”, onde só habitam 10 (3,33%) dos mais de 300 milhões de lusófonos? Então, por que é que os angolanos já adotam a palavra “muambeiro” como sinônimo de “candongueiro”, sendo esta a única palavra que se usava em 1975, quando saí da minha terra natal? Certamente, por influência das novelas brasileiras, também, muito apreciadas em Portugal... Por que é que os portugueses adotam atualmente o termo “carrinha”? Certamente, por pura influência dos exilados de Angola que foram acolhidos em Portugal... Portanto, a língua é uma entidade viva e se molda mais pelo amplo convívio dos povos e não por acordos políticos e técnicos. Uma coisa é certa: muitas regras do acordo ortográfico levarão muitos anos até serem absorvidas pelos diversos povos lusófonos e algumas nunca vingarão. Quem viver, verá!

Malgrado o esforço dos especialistas dum lado e outro do Atlântico, certas palavras assumirão sempre significados bastante diferenciados em várias regiões e povos, por exemplo, analise-se alguns sentidos para a palavra “liso”:
  1. Franco, lhano, sincero, leal (sentido figurado).
  2. Pessoa esperta, difícil de ser apanhada, escorregadia (Florianópolis, Santa Catarina, Brasil).
  3. Sem dinheiro (uso popular em Portugal e no Nordeste do Brasil).
Em 1988, ao vir morar em Santa Catarina, ao dizer que estava “liso”, para significar a minha penúria financeira, alguém me respondia: “Ai é, tu és liso?”. Então, entendi que liso é alguém muito “vaselina”, pessoa pouco afeita a se comprometer e com um discurso dúbio ou bem agradável aos ouvidos de toda a gente. Então, me esclareceram que ficar sem dinheiro é ficar “duro”, o que em Portugal e Angola daria origem a interpretações bem maliciosas. Como dizia repetidamente a minha avó Laudelinda: “cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso”.

Cabe aqui recordar o trecho de uma poesia de gaúcho (o povo que se considera “o mais macho do Brasil” ou “machucado”, como dizem os “Catarinas”), numa veia bem “gaudéria” (malandra), que elucida o uso do termo “liso” no Sul do Brasil:

C... de lombo liso
É como um jundiá fora d’água
Que a china olha com mágoa
E agarra com devoção
É mais liso que sabão
Cruza matos e espinhos
No meio da escuridão

Recorde-se que o jundiá é um tipo de bagre, praticamente, sem escamas; quanto ao termo C..., você interpreta como quiser – dê asas à sua imaginação – porque é escrito e usado com o mesmo sentido em todos os países lusófonos.

Como o Acordo Ortográfico é mais obra de políticos do que dos povos lusíadas, então, não poderíamos deixar de fazer aqui uma referência à “lisura” de quem nos governa, quando entra num estado de eminente “dureza”, conforme um blog brasileiro:

O blog do Noblat e o ex-blog de César Maia esquentam a chapa de Okamotto. O prefeito do Rio divulga os números das contas do amigão de Lula. E Noblat conta que, "no segundo semestre do ano passado, um destacado senador da CPI dos Correios foi procurado pelo empresário mineiro Marcos Valério, um dos principais operadores do mensalão. - Estou duro de dinheiro. Diga isso a Okamotto - pediu Valério."

Finalmente, quero destacar a criatividade popular brasileira na recriação da língua portuguesa. Ao chegar ao Brasil e ao concluir o meu mestrado na Escola de Engenharia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, expressei a minha concordância com um Professor Orientador argentino que disse a uma mestranda para retirar da dissertação a palavra “graficar”, pois ele dizia com razão que essa palavra não existia em Português. Perante os meus comentários, um colega me disse: “Lúcio, você vai ver muitas vezes que aqui, no Brasil, qualquer substantivo vira verbo”. Então,
“bloga-se” o Acordo Ortográfico! Viva a flexibilidade da Língua Portuguesa, a nossa Pátria!

Um grande abraço do Kabiá-Kabiaka.

quarta-feira, setembro 19, 2007

DESTINO DO BRASIL

Certamente, todos já topamos em alguma ocasião com um pensamento que diz, mais ou menos, o seguinte: semeia um pensamento, colherás uma palavra; semeia uma palavra, colherás uma ação; semeia uma ação, colherás um hábito; semeia um hábito, colherás um caráter; semeia um caráter, colherás um destino. Efetivamente, em primeira instância, os nossos pensamentos determinam quem nós somos... “Nós somos o que pensamos”, dizia Buddha.

Vivemos aqui, no nosso mui amado Brasil, no meio da gritaria contra a impunidade da grande quantidade de políticos corruptos, que têm sido flagrados na apropriação do erário público em seu benefício pessoal e dos seus grupos de influência. Aliás, este é um mal que grassa, em menor ou maior grau, em todos os países lusíadas. Ainda, hoje, disse para os meus alunos do sétimo semestre de engenharia civil que eles deveriam se revoltar mais contra certos “pequenos” hábitos que eles mesmos praticam ou desculpam e não contra os hábitos dos políticos que nos (des)governam. Isto porque esses políticos são o resultado e não a causa do que nós mesmos somos. Eles são os frutos e não a árvore. A qualidade dos políticos que governam uma nação é fruto da cultura do povo – a árvore – que os apóia e elege. Jesus disse que “a árvore má não pode produzir bons frutos, assim como a árvore boa não produz maus frutos”. Realmente, como sempre acreditei, “cada povo tem o governo que merece”.

Assim, para aperfeiçoar o governo e o destino de um país, então, deve haver um crescimento do seu povo em termos de cultura, educação e conhecimento, pois como disse Confúcio a respeito dum seu discípulo muito afeito a hábitos pouco corretos: “madeira podre não pode ser esculpida, uma parede de esterco não pode ser caiada”. (Anacletos 5:10).

Em suma, se queremos mudar o governo do país em que vivemos, vamos dar melhores exemplos de ética e cidadania e iniciemos um novo movimento de idéias que resultem em novas visões da realidade, traduzidas em palavras, ações, hábitos e caráter individual e coletivo.
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Um grande abraço do Kabiá-Kabiaka.

sexta-feira, setembro 07, 2007

ANIVERSÁRIOS

Um Aniversário Feito Esperança

Hoje é o 185º. aniversário da Independência do nosso Brasil. Digo nosso porque, apesar de eu ter a nacionalidade portuguesa, me sinto essencialmente um Lusíada e, como Guerra Junqueira e Fernando Pessoa, gosto de dizer que “a minha Pátria é a Língua Portuguesa” cuja obra literária maior é “Os Lusíadas” de Luís Vaz de Camões. E, sem dúvida, a maior obra sócio-político-geográfica dos povos Lusíadas foi o nosso Brasil, ao qual um escritor estrangeiro chamou em 1941 de “Um País do Futuro”.

Quis também a Divina Providência que eu nascesse neste dia, precisamente, há 54 anos. Porém, sou eternamente grato ao meu pai que entrou na igreja para me pôr o nome de Mário Orlando e, no momento decisivo de transmitir o nome ao padre, resolveu sentenciar que eu seria Lúcio Flávio, aliás, um nome muito mais brasileiro. Imaginem que no meio de toda essa criatividade e improvisação do meu Mais-Velho eu fosse chamado de “Setembrino do Sete de Setembro”, como já ouvi existirem alguns no Brasil, em homenagem ao dia do seu nascimento na maior data da “Pátria amada, idolatrada...” (trecho do hino brasileiro). Seria de “chorar em alemão”, como soe dizer-se aqui em Blumenau-SC.

Dois eventos recentes me deixam bastante esperançoso quanto ao futuro do país que me adotou como filho e onde, em retribuição, eu resolvi ter e criar dois filhos biológicos e três adotivos.

O ex-corredor de Fórmula 1 Nelson Piquet teve a sua habilitação de motorista comum apreendida e viu-se obrigado a fazer um curso de reciclagem em direção/condução defensiva, para ser reabilitado. Ele explicou à imprensa que em Brasília, onde ele mora, existe muita variabilidade dos limites de velocidade, às vezes numa mesma rua, o que induz o motorista ao erro de ultrapassar frequentemente a velocidade máxima especificada, porém assumiu humildemente os seus erros e acrescentou que precisava de “criar vergonha na cara”.

Ainda, na semana pretérita, saiu uma primeira condenação pelo Supremo Tribunal Federal dos políticos mensaleiros, ligados ao partido no poder, que montaram um esquemão de corrupção para se apropriar do erário público em benefício pessoal e partidário. Caso nunca visto na História do Brasil! É obra!...

Assim, posso ter esperança em dias melhores para o nosso Brasil, quiçá, até que ele se torne a breve prazo o “país do futuro”, como profetizou o escritor austríaco Stefen Zweig em 1941, quando viveu no Rio de Janeiro com a sua segunda mulher Lotte, para fugir das atrocidades ocorridas na Europa durante a Segunda Guerra Mundial.

A concluir, contudo, como diz o velho provérbio, “cuidados e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém”, por isso, é bom também atentar para as reflexões dos mais pessimistas: “Estamos tão no fundo do poço, em matéria de práticas políticas, que, mesmo diante de uma decisão histórica como a do Supremo Tribunal Federal, é duro acreditar que as coisas venham, mesmo, a mudar” (Roberto Pompeu de Toledo, in Veja, 4/9/2007).

Muda Brasil, MUDA!

Um Aniversário Feito Certeza

A data do nosso aniversário é o dia ideal para marcarmos encontro com os nossos maiores desafios de auto-superação pessoal.

É o dia ideal para o reencontro especial com a saga da nossa própria Vida.

É o dia ideal para descobrir as respostas para as grandes interrogações da nossa Vida.

É o dia ideal para romper mais uma fronteira no universo do autoconhecimento e verificar que este é mais vasto do que possam pensar as mentes vãs e comuns que muito injustamente nos costumam avaliar.

É o dia ideal para recordar quantas vezes já transformamos adversidades em vitórias, demos a “volta por cima”, indicando à nossa mente e espírito que, mais à frente, só poderá existir uma VIDA MAIOR E MELHOR...

Por tudo o que atrás escrevi, eu comprei no dia de hoje um livro com o título “O Líder do Seu Destino: respostas para a vida” e nele escrevi a seguinte dedicatória:

A você,
Meu melhor Amigo,
A quem mais estimo,
A quem dedico o melhor do meu respeito.
Nesta fase tão difícil de uma vida
Que brilhantemente completa mais um ano
De porfia,
Luta abnegada,
Pautada por crenças e valores superiores,
Pelo Grande Espírito abençoados...
A você,
Dedico esta obra inspiradora,
Regeneradora,
De um novo Recomeço,
De uma nova Sina...
A você, meu melhor Amigo,
Que abaixo se assina:
Lúcio Flávio da Silveira Matos.
Blumenau, 07 de setembro de 2007.


PS. Há um provérbio que diz: “setembro, ou seca as fontes ou leva as pontes”. Como no setembro em que eu nasci, no planalto do Huambo-Angola, já tinha passado a estação do Cacimbo e as fontes não estavam mais secas, no início da estação das Chuvas, então, só podem jorrar de mim águas caudalosas que exigem a construção de sólidas pontes, para não serem arrastadas na minha correnteza da Vida para o Oceano Infinito...

Um grande abraço do Kabiá-Kabiaka.

segunda-feira, agosto 27, 2007

CORAÇÃO DE CRIANÇA



O meu coração de criança
É o rio profundo
Feito esperança
Em que afundo...
O meu coração
Balança,
Dança
E mergulha na vida feita criança!...

Lúcio Huambo
Blumenau, 27/08/2007.

sábado, agosto 25, 2007

A PARÁBOLA DAS FORMIGAS

Rainha e obreiras (In http://pt.wikipedia.org).

O holandês Franz de Waal, de 59 anos, é considerado atualmente o maior dos primatologistas e, como tal, também, é um estudioso das relações sociais de diversas espécies e ordens de bichos, tendo em vista compreender melhor o comportamento do mais notável dos primatas – o ser humano. Em entrevista que li recentemente ele diz o seguinte sobre o péssimo hábito que o bicho-homem tem de se envolver em guerras fratricidas: “As formigas são os bichos que mais se devotam à guerra no planeta. Possuem exércitos regulares, com tarefas bem definidas para cada pelotão, e promovem matanças de grupos rivais. Mas nem entre elas existe algo equivalente ao genocídio, o assassinato maciço de outro grupo da mesma espécie. Só mesmo o homem é capaz disso em todo o mundo animal.” (in Veja, 22/08/2007, grifado nosso).

O trecho da entrevista acima transcrito trouxe à minha mente uma avalanche de recordações e idéias que me têm ferido a sensibilidade há muito tempo e que resolvi verter na parábola que vou passar a contar.

Num tempo em que o planeta Terra era só habitado por formigas, estourou uma grande guerra entre dois grupos rivais dum determinado país.

Muitas formigas guerreiras não sabiam bem por que estavam tão dispostas a dar a própria vida no campo de batalha, apenas percebiam que as suas comandantes eram suficientemente persuasivas para levá-las a odiar as irmãs do grupo político rival. Cada uma só pensava em apagar completamente qualquer rival que lhe aparecesse pela frente.

Aquela guerra terrível entre formigas compatriotas durou mais de vinte e sete anos e só terminou porque a formiga-rainha de um dos grupos foi morta, após ter sido atraiçoada por algumas das suas operárias guerreiras e por aliadas estrangeiras que forneceram ao grupo inimigo a exata localização da sua comandante-em-chefe.

Que bom, acabou a guerra! – disse o povão formigueiro que aproveitou para dançar nas ruas durante quase 24 horas ininterruptamente, até ao nascer do sol do dia seguinte; toda a festa do Zé Povão era justificável, após o longo cansaço de ter sido usado e aniquilado pelo fogo entre os dois grupos conterrâneos, como o “o mexilhão que sempre leva a pior quando o mar bate na rocha”.

O pior é que feitas as contas da mortandade, chegou-se à triste conclusão que os 27 anos de guerra tinham dizimado mais de 3 milhões de formigas daquele país, um verdadeiro genocídio antes nunca visto em todo o planeta dominado pelas formigas. Será que as formigas desse país já estavam um degrau acima das restantes, no caminho para se transformarem em formigas-humanas? Não era possível, mas era uma questão a ser investigada cientificamente...

Outra conseqüência trágica daquela guerra fratricida tinha sido a quantidade de formigas mutiladas pelas minas terrestres. Falava-se em cerca de um milhão, sem pernas, braços ou algo mais. Uma verdadeira tragédia que parecia não conhecer fim, pois se dizia que o terreno estava cheio de minas perigosíssimas prontas a matar e mutilar uma quantidade infindável de formigas que porventura ousassem voltar à vida pacífica e normal no meio rural, onde teriam forçosamente de percorrer os seus antigos caminhos de trabalho organizado e próspero.

Calma! Eis que surge uma luz no fim do túnel! Outro país de formigas laboriosas e pouco afeitas à guerra, nas margens ocidentais do Atlântico Sul, tinha inventado um helicóptero que fazia a desminagem de modo bem acelerado. Uma lobista representante da fábrica de tais helicópteros deslocou-se ao país minado para fazer a proposta de venda pela módica quantia de 450 mil dólares por unidade, dentro de um programa a fundo perdido da OFU – Organização das Formigas Unidas, que estava muito interessada em que tudo voltasse o mais rapidamente possível à normalidade no país das formigas que tinham cessado recentemente as hostilidades. Algumas formigas-ministras manifestaram o grande interesse do seu governo na aquisição dos helicópteros para a desminagem e fizeram uma proposta – muito estranha para a lobista e muito familiar para elas, ministras – o preço de cada helicóptero deveria ser aumentado para 3 milhões e 200 mil dólares, devendo reverter a diferença de preços totalmente em benefício de alguns membros daquele governo, pois tinham feito grandes sacrifícios pessoais para conseguir derrotar o grupo rival e achavam-se merecedoras desse prêmio. Como a OFU não aceitou o preço incrementado, por ter sido considerado exagerado ao ser comparado ao de outro helicóptero similar fabricado por outro país de formigas que habitavam para os lados do extremo oriental do Mediterrâneo, e com o qual não era possível haver “esquema”, então, o magnífico negócio dos helicópteros-sapadores simplesmente não aconteceu... A maioria da população nacional que tinha se acumulado durante a guerra em grandes aglomerados urbanos, sem grande qualidade de vida, teve medo de regressar ao campo porque os trabalhos de desminagem continuaram a se processar em passo de caracol e não de formiga...

Não sei por que é que resolvi escrever esta Parábola das Formigas (?)... Talvez, porque eu sou um fã incondicional do Grande Mestre que tinha o hábito saudável de falar desse modo às pessoas que o seguiam, como atesta a declaração: “E não lhes falava nada a não ser em parábolas” (Marcos 4:34). Eu resolvi imitá-lo por saber que seria muito mal compreendido por alguns dos meus leitores, se resolvesse desabafar muito abertamente sobre as tais coisas que me têm ferido a sensibilidade há muito tempo. Realmente, como o Grande Mestre nos ensinou, cada pessoa só compreende as coisas do mundo a partir da sua própria perspectiva. Por isso, Ele ensinou muito por parábolas.

Como ocorreu com as pessoas do tempo de Jesus, as parábolas não mudam em nada os eventos da nossa vida, mas podem nos ajudar a vê-los com outros olhos. A Parábola das Formigas não terá o poder de mudar o que acontece, mas pode mudar as nossas crenças sobre determinados acontecimentos do nosso mundo, sem abrir mais algumas feridas que têm demorado a cicatrizar.

Uma coisa é certa: qualquer semelhança entre o país das formigas assassinas e um país de humanos, eventualmente existente, é a mais pura coincidência! A menos que humanos tenham a possibilidade de se transformar em formigas... Cada um dos leitores é responsável pela proposição dessa possibilidade!

Um grande abraço do
Kabiá-Kabiaka.

domingo, agosto 19, 2007

MAPA DA REGIÃO CENTRAL DO KATOFE

Obs.: clicar sobre o mapa para visualizar uma ampliação.

DUZENTOS E FEITIÇARIAS

Estava um dia na frente da loja do Kilamba[1] Vicente, cerca das seis da tarde, a contemplar o infinito das baixas que se vergavam à mística do pôr-do-sol divinal e iam além do rio a desfazer-se, para a esquerda, no morro da Sanzala[2] do Hombo, e, para a direita, a esparramarem-se pelo vale fluvial que serpenteava entre os morros de granito, quando vi vir na minha direção no seu passo seguro e cadenciado o Kimbanda[3] Duzentos, detentor de um porte de sékulu[4] respeitável, apesar de atarracado nos seus 1,60m, coroados majestosamente por um chapéu de feltro de abas cortadas, barba varonil grisalha como convém a um régulo africano, bem calçado por botas de cano de borracha, próprias para o trabalho na chunda[5], cajado numa mão a marcar sobre o chão endurecido pelo cacimbo[6] a passada calma, mas firme, e a catana na outra, instrumento de trabalho e defesa no caminho de casa, esta isolada junto às Pedras do Quiquerengue, a cerca de 5km da povoação dos brancos (clicar sobre o mapa da Região Central do Katofe, acima).
O Kimbanda Duzentos era uma personalidade bastante popular nas paragens mais recônditas da savana do Katofe, quer entre os mbundu[7], quer entre os kindele[8]. Ele era um funcionário dedicado no serviço do gado do Sr. Kimbaça – Emílio Dias – desde que chegara à savana catofeira, proveniente da Sanga, um Posto Administrativo próximo do Katofe, uns 60 km ao sul, indo pela estrada velha de terra batida para Nova Lisboa - Huambo, que passava pelo Bailundo e não pelo Alto Hama, como a estrada nova alcatroada.

Um esboço do Kimbanda Duzentos.

O Mais-Velho Duzentos, como eu gostava de chamá-lo, era muito respeitador de todos e sempre achei que as suas artes de Kimbanda passavam mais pela elaboração de milongos[9] e evocação dos espíritos dos antepassados para curar as pessoas que o consultavam e não tanto por feitiçarias que trouxessem desgraça a alguém. Eu gostava muito de questioná-lo, quando já era estudante do Liceu General Norton de Matos, em Nova Lisboa, e ficava a trabalhar na loja durante as férias, onde ele entrava no final do serviço para tomar uns tragos de vinho tinto do Puto[10], de vez em quando, já que na loja do patrão Vicente era puro da uva, sim senhor, não era bacaxis[11] nem Bangasumo baptizado[12].
A conversa discorria, mais ou menos, assim:
- Oh, Duzentos nunca mais és promovido, quando é que passas a Duzentos e Cinquenta? - provocava eu.
- Não, minino. Eu vou morrer mesmo Duzentos, senão dá muita confusão, não é bom trocar de nome, pode dar azar - respondia o Kimbanda.
- O que é isso de azar? É feitiço? Feitiço não existe... Só pessoa que não estuda é que acredita em feitiço. Já viste algum branco que acredita em feitiço? - eu provocava, novamente.
- Ele ripostava: Aka
[13], minino! Branco é que tem mais feitiço! Branco tem feitiço demais, yá vika[14]! Vê só, carro tem muito feitiço, se vai no estrada na frente de carro é capaz de perder a vida! Aqui, a catana[15] ele passava suavemente a ponta do polegar sobre o fio da catana que trazia sempre com ele – a catana, vê só, tem muito feitiço. Quem fez isso tudo que pode tirar a vida co dipressa? Foi o branco! É mesmo, também tem muito feitiço, mesmo, branco é quem tem mais feitiço do que preto... Tudo que pode tirar a vida tem feitiço! Carro tem feitiço... Tractor tem feitiço... Catana tem feitiço... Espingarda tem feitiço...
- Então, quer dizer que quando tu fazes feitiço é para tirar a vida de alguém? É por isso que nunca mais vais chegar a Duzentos e Cinqüenta! - instiguei assim ele a falar mais.
- Aka, minino, não fala isso... Minino tem muito esperto... Eu quer dizer que feitiço é vida, eu não quer tirar vida de ninguém, não, mesmo. - retornou ele, rindo muito.
- Toma cuidado com esses teus feitiços e milongos, porque se tu me colocares feitiço e eu ficar mal, então, eu vou te queixar no Soba da Banza, o Soba Sebastião, e ele vai te levar preso lá na Administração da Quibala. - eu acrescentava uma nova provocação.
- Não, minino Lúcio, preto não pode fazer feitiço para branco. É branco só que faz feitiço para branco. - disse ele, para término de conversa.
Naquele dia, eu fiquei a entender que para o Mais-Velho Duzentos a feitiçaria era um sinônimo de tecnologia e que os feitiços que ele fazia eram racistas, não podiam atingir os brancos. Se ele não me convenceu muito quanto à sua definição de feitiço, pelo menos, deixou-me bem tranqüilo quanto às conseqüências dos seus trabalhos esotéricos.


O autor nos tempos das divagações filosóficas com o Kimbanda Duzentos.

Um outro dia na loja, após uma amigável parceria de copos de tintol do Puto, o Mais-Velho Duzentos travou-se de razões com o José Lucas Candeeiro. O José Lucas Candeeiro era um funcionário bailundo[16], dos Serviços Veterinários de Angola, nascido no Longonjo, na Serra do Lépi, no Huambo, que auxiliava o Ajudante de Pecuária, ou seja, o técnico que vivia na povoação para manter o gado devidamente vacinado. O Candeeiro gostava de se abastecer diariamente de petróleo de uva, ao terminar a sua faina de vacinação, a tal ponto que nós sempre lhe perguntávamos:
- Como está o Candeeiro, já está aceso, ou apagado?
Quase sempre ele respondia: está apagado, está apagado! Vamos encher mais petróleo no Candeeiro!
Mas, voltando à discussão dos parceiros de fim de tarde, a páginas tantas, depois de terem discutido bastante em kimbundu
[17], o Candeeiro resolveu encostar à parede o velho Kimbandeiro com esta:
- Olha cá senhor Duzentos, não adianta o senhor Duzentos querer me meter medo, não, eu não tenho medo do seu feitiço; o seu feitiço não pega em mim, eu não sou do teu povo! Feitiço de Kimbundu não pega em Ovimbundu!
Só nesse dia é que eu entendi que os espíritos e os feitiços africanos, além de racistas, eram também tribalistas.


[1] Kilamba – pessoa sábia.
[2] Sanzala – aldeia africana.
[3] Kimbanda – feiticeiro e curandeiro.
[4] Sékulu – velho.
[5] Chunda – curral do gado, estábulo.
[6] Cacimbo – estação seca de Angola, quando o frio se faz sentir com muita neblina durante a noite.
[7] Mbundu – homem negro.
[8] Kindele – homem branco.
[9] Milongo – remédio feito com ervas do mato.
[10] Puto – Portugal.
[11] Bacaxis – vinho de abacaxi.
[12] Bangasumo batizado – marca de vinho angolano de abacaxi, geralmente, adulterado com mistura de água.
[13] Aka – interjeição de admiração, como “puxa”.
[14] Yá vika – muito.
[15] Catana – facão de lâmina larga bastante usado em Angola para cortar mato.
[16] Bailundo – nativo de Angola da etnia Ovimbundu.
[17] Kimbundu – etnia e língua de Angola.

sábado, agosto 18, 2007

MENINICE NA SAVANA

Só o Malua tinha toda a paciência para proporcionar ao seu Kabiaka um passeio tão confortável como este pelas picadas da savana, enquanto o menino Paga-Fogo exercitava as kinamas.


PASSADO PRESENTE

Porto, 13/11/1982

Na janela, as gotas do vapor condensado...
Na retina, as imagens por ele coadas do exterior...
Sinto-me mais só, mais recolhido, mais confortado...
Lembro-me das coisas tristes e belas dum passado teimosamente presente;
Sinto no corpo as riquezas e pobrezas da minha terra distante...
A pele empolada pelo sol escaldante;
Nas veias, o sangue dos heróis duma guerra insensata;
No coração, a angústia e o ódio dos eternos escravizados;
Na mente, a desilusão dos efêmeros desterrados.
Ainda me lembro da meninice livre e despreocupada;
Nas costas do Malua, explorando a savana;
Tagarelando o “kimbundu”;
Mastigando o “salalé”;
Saboreando o “tortulho” e o “funge”;
Caçando os pássaros com fisga e visgo;
Esfolando os sapos com precisão milimétrica;
Calcorreando as “picadas” estreitas e sem fim;
Os pés saltando nas poças enlameadas;
As sandálias filtrando o pó dos “carreiros gentios”.
Vejo cair a chuva copiosa e morna,
Numa harmonia compassada pelas trovoadas ensurdecedoras,
O vapor subindo da língua alcatroada,
O asfalto derretido pelos raios abrasadores,
O pôr do sol cor de fogo,
O “cacimbo” do frio penetrante,
As colunas fumegantes das “queimadas,”
O “capim” verde das primeiras chuvadas,
As altaneiras pedras negras da “fazenda”,
As “baixas” infinitas duma terra acabada.
Tudo acabou! Tudo passou! Mas tudo está presente!

quinta-feira, agosto 16, 2007

A DÉCIMA ILHA VISTA DO SATÉLITE

Obs.: por favor, clicar sobre o mapa para visualizar uma ampliação.

segunda-feira, agosto 13, 2007

A DÉCIMA ILHA DOS AÇORES

Artigo originalmente publicado em ATLÂNTIDA, VoI. XLVI, 2001, adaptado por Lúcio Matos, filho do autor.

S. JORGE DO KATOFE
OU A DÉCIMA ILHA DOS AÇORES


VICENTE TEIXEIRA DE MATOS*

“Dos nossos olhos até à hora da nossa morte nada fará desaparecer aquele brilho húmido e doce que se acende, quando a recordamos.”. (Vicente Matos)
.
"Quem lembra, prevalece..." (Lindolf Bell)

A Décima Ilha dos Açores, assim crismada pelo jornalista director da ANI, o terceirense Dutra Faria, é a pequena história de gente açoriana, rija e trabalhadora, espalhada "como quem não quer a coisa" pelos vales cir­cundantes do Rio Katofe e seus afluentes, atravessados pela estrada Luanda/Huambo, a 364 km da primeira e a 245 km da segunda destas cidades. No Sub Planalto de Benguela, a cerca de 1.300 metros de altitude e à distância média do mar de 200 km, no Concelho de Kibala, distrito de Kuanza Sul, Província de Angola.
Hesitei anos até reduzi-Ia a escrito: mas aquelas mulheres e aqueles homens, modestos e sofridos, e aquelas ruí­nas trágicas e dramáticas merecem que deles fique memória!... E assim, já tão longe daquela ardente mocidade, a minha consciência não ficaria tranquila sem lhes prestar este mais que modesto preito. Aos mortos e aos vivos, aço­rianos humildes, que lançados no meio do agreste mato angolano, rodeados de mil dificuldades, com parcos meios, edificaram aquela singela utopia!...

Antecedentes - As nove ilhas dos Açores, situadas em pleno Atlântico - O Grande Mar Poente - entre a Europa e a América, são, como sabemos, caracterizadas por um clima instável, varridas por ventos e brumas, ciclones e sismos; clima propício a diluir realidades, parir fantasmas e recriar sonhos de partir e de voltar!...
Nos fins dos anos vinte, do século que acaba de findar, quando começa esta memória, os destinos emigratórios dos ilhéus - Brasil e América do Norte - estavam saturados. Do Canadá, ainda, não se falava; havia de procurar-se outros destinos. As ilhas continuavam limitadas: "gente quanta queiram" em terra escassa, cortada pelo mar infindo e por velhas barreiras económicas e sociais. Por informações e histórias de quem lá servira ou trabalhava, começava a falar-se do Ultramar Português que, de terra de degredados e doenças mortais, se poderia transformar em "terra quanta queiram", apta a produzir riqueza desbravando o mato, sem prejudicar o legí­timo desenvolvimento dos povos nativos. Por exemplo, Angola teria sete habitantes por km2 contra mais de cem nas ilhas.

Início da Emigração - Em 1929, três jovens lavradores da Ilha de S. Jorge (Norte Grande), de nomes João Alves de Oliveira, Emílio Dias e André Alves de Olveira, irmão do primeiro, resolveram tentar a sua sorte em Angola. Foram recomendados a um jorgense - Tenente Bettencourt, deportado por razões políticas e na altura exercendo comércio na Vila da Kibala. Viriam a desembarcar em Porto Amboim (Benguela a Velha), o mais próximo do seu destino, para o qual se dirigiram numa camioneta de carga antiga, como mais uns fardos, através das terras vermelhas do Amboim, ubérrimas produtoras do café do mesmo nome, estrada barrenta de orografia muito acidentada, na qual os carros se atascavam, para desespero dos seus ocupantes. Por fim, lá chegaram a casa do seu conterrâneo. Seguidamente fizeram sociedade com o capitão Diogo Sandão, reformado e antigo pacificador daquela região, onde possuía uma fazenda, nos arre­dores da Vila. Aí, começaram nova fazenda, em terrenos contíguos, que iriam apelidar de Norte Grande. Efectuaram desbravamentos para sementeiras de milho e café e iniciaram a criação de gados bovino e porcino.

Família de Emílio Dias (Kimbaça para os nativos), 1 dos 3 pioneiros, com o primeiro tractor adquirido pela lavoura no Katofe.


Colonização - Passados cinco anos, adaptados à terra e ao clima, resolveram os três lançar-se, por sua conta e risco, estabele­cendo-se a 17 km da Kibala, junto à estrada de Luanda/Huambo, às margens do Rio Katofe; em vales de boas ter­ras para sementeiras de milho e arroz e boas pastagens para a criação de gado; fundando também um pequeno comércio, que servia de apoio e financiador da agricultura. "Boas terra para tudo, menos para os homens", opina­vam os entendidos! Na verdade o clima era duro e a terra infestada de mosquito e malária. No entanto, aqueles homens eram corajosos, não estavam dispostos a desertar! Contudo, em 1941, pelo Natal, pagaram o seu primeiro e doloroso tributo, falecendo o André Oliveira vitimado pela biliosa palúdica, que, naquela época, não perdoava...
Porém, dez anos passados - 1945 -, já possuíam lavouras de milho, de arroz, pomares e hortas e uma manada de cento e tal bovinos, dezenas de porcos e um pequeno rebanho de cabras e ovelhas; matéria prima para célebres caldeiradas de cabrito e borrego! Possuíam ainda dois moinhos hidráulicos, os únicos na área da Kibala, mercê de um açude construído no Rio Katofe, que ainda fornecia água para regar o arroz. Do rebanho de bovinos, exploravam as vacas leiteiras, cujo leite era aproveitado no fabrico de manteiga e queijo, vendidos nas vilas dos arredores.
Em 1945 admitiram um novo sócio, Vicente Teixeira de Matos, bem mais jovem, de uma família jorgense da Ribeira Seca, radicada nos arredo­res da cidade do Huambo.


O autor com 18 anos no final dos estudos no Liceu de Angra do Heroismo, quando desistiu de prosseguir estudos universitários no curso de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa e resolveu viajar para Angola.

O autor logo após a sua chegada a Angola.


O autor quando do serviço militar como furriel miliciano, em Nova Lisboa, Huambo, antes de ir para o Katofe.



O autor - Kilamba para os nativos - já na lavoura do Katofe com o trator Massey Harris da firma Oliveira & Dias.


O autor com a sua esposa Maria Bernardete, com quem casou por procuração com 30 anos em dia e horário em que estava a procurar vacas no mato do Katofe.


O autor e a sua família extensa, em 1954. Da esquerda para a direita: José Teixeira de Matos (pai), Noémia da Silveira (madrasta), Vicente Matos, Zeca Matos (filho no colo), Maria Bernardete (esposa), Lúcio Matos (filho, no colo), Estêvão Silveira Coelho (sogro), Noémia de Fátima (irmã cassula), Laudelinda Cabral (sogra) e Arnaldo Silveira Coelho (cunhado).

Vicente Matos, em 1955, aos 35 anos, com dois dos seus sete filhos do Katofe.


Em 1946, chegou a Angola um Batalhão Expedicionário açoriano que, desmobilizado em 1948, deixou vários dos seus elementos em Angola, dos quais quatro vieram juntar-se ao embrião do povoamento açoriano no Katofe.
Por essa mesma altura, desembarcaram em Angola duas famílias com filhos que se dirigiram igualmente a Katofe, com a intenção de aí se radicarem. Estas chegadas vieram despoletar a ideia latente da criação de uma entidade patrocinadora do nascente povoamento.
Assim, os organizadores lembraram-se que a palavra cooperativa significava cooperar = trabalhar juntos - sem precisarem de se estender às origens dos "Pioneiros de Rochdale" - 1844, - bastando os exemplos da sua ilha natal - S. Jorge, para se organizarem de forma a apoiar os associados, em funções tão vastas como construir tudo a par­tir dos alicerces: casas, desbravamentos, compras de gado bovino, valas de enxugo e rega, fábrica de lacticínios, Igreja, Escola, Posto Sanitário, tudo o necessário para fazer funcionar uma urbe, espalhada num raio de quilómetros.
Em 26 de Setembro de 1949, no Cartório Notarial da Comarca de Nova Lisboa (Huambo), foi assinada a escri­tura de fundação da Cooperativa de Colonização Agro-Pecuária "A Açoreana", com sede em Katofe, área do Posto Sede de Concelho de Kibala. Os Estatutos da Cooperativa foram publicados no Boletim Oficial da Província da Angola, III Série, no 48, de 1 de Dezembro de 1949. Foram dezanove os fundadores.
Os Estatutos possuíam um parágrafo (cap. I art. 2o e seu parágrafo sexto) muito sintomático e por isso o trans­crevo: "Difusão entre os nativos da região, dos benefícios conseguidos pela Cooperativa, na medida do possível e seja do interesse deles; como conhecimentos agro-pecuários, assistência sanitária, etc., atendendo ao espírito de colaboração que caracteriza a colonização potuguesa". Isto se cumpriu até ao fim!
Os povoadores que vinham chegando dos Açores, uns mais outros menos, eram portadores das poupanças e do produto da venda dos seus haveres, decididos a tudo investir na terra feiticeira da Angola... Em primeiro lugar, construíram as pequenas casas, que muitas vezes começavam por uma casa de côlmo em estilo nativo, e adquiriam algumas cabeças de gado bovino. Num caso, houve quem começasse com duas vacas leiteiras.
Sendo crescente o número de povoadores em S. Jorge do Katofe, a Cooperativa requereu ao Governo de Angola a concessão de um empréstimo de mil contos, com pagamento escalonado por quinze anos, para serem investidos na compra de gado bovino, a distribuir aos sócios fundadores. Em Dezembro de 1951 foi concedido o empréstimo pela Junta de Comércio Externo e iniciada a compra de gado bovino no sul de Angola.
O rebanho, de algumas centenas de cabeças, depressa atingiu mais de um milhar e a consequente subida da produção de lacticínios. Assim, na época, Angola viria a transformar-se de total importadora em exportadora.
Em 1950/1951, festejaram-se os primeiros nascimentos e baptizados de jorgenses de S. Jorge do Katofe, raízes lançadas em boa e generosa terra, penhores do futuro desta iniciativa de açorianos, que não parava de crescer.

Os primeiros filhos açórico-angolanos do Katofe, lamentavelmente, espalhados por Portugal, Brasil, EUA e Canadá.


O pioneiro Emílio Dias na eira de secar o milho com alguns rebentos açórico-angolanos, Lúcio Matos, São Dias, Idalina Dias, Zeca Matos, Maria Ângela Dias e Linita Dias (da esquerda para a direita).

A assistência religiosa foi desde o início prestada pela Missão Católica de Kibala, numa casa particular. Em 1 de Setembro de 1952, Sua Excelência Reverendíssima o Arcebispo de Luanda, benzeu a primeira pedra da pequena capela, que viria a ser dedicada ao padroeiro S. Jorge pelo mesmo Arcebispo, em 1954. Esta capela viria a ser reconstruída mais duas vezes, transformando-se numa bela igreja, que não envergonhou os seus construtores. Deve assinalar-se que alguns povoadores contribuíram para estas obras com quantias superiores às que dispende­ram nas suas próprias casas. Não negando a sua generosidade e a sua fé! Nela seriam baptizados e depois cris­mados os seus descendentes e continuadores. Nela acabariam por casar alguns dos novos jorgenses.


Igreja de S. Jorge do Katofe: primeira reconstrução, em Dia de Pentecostes, e segunda reconstrução, em 1970.

Alguns dos jovens do Katofe em dia de casamento, no início dos anos 1970.

A igreja depredada atesta a destruição e a desolação trazidas pela guerra insana (2003).


Em 1952, a pedido da Cooperativa, o Estado legislou a criação de uma Reserva do Estado, de 52.000 hecta­res, onde se implantariam as fazendas dos povoadores e se reservariam os terrenos para uso comunitário das aldeias nativas, como era norma do seu direito consuetudinário. No futuro viriam a ser, mais ou menos, 20.000 hec­tares para fazendas e 32.000 hectares para aldeias, os primeiros completamente aproveitados em 1975.
A fim de exemplificar o crescimento económico da Cooperativa e seus associados, à falta dos números que todos os anos eram publicados nas contas da Cooperativa (o único que conservamos, impresso, é o de 1961), socorro-me de escritos do "Diário Insular" de Angra, quase todos da pena do citado jornalista Dutra Faria, "padrinho" do crisma da Décima Ilha dos Açores. Estas crónicas, assim como conferências nas Casas dos Açores de Lisboa e Rio de Janeiro, eram produtos das suas visitas a S. Jorge do Katofe, em 1951 e 1954, e de informações epistolares.
Assim, no ano de 1949 - ano da fundação - assinala-se uma pequena produção de 1.804 kg de manteiga e queijo, no valor de 82 contos. O número de gado existente era de 400 cabeças.
Já em 1955, seis anos depois, a produção era de 6.000kg de manteiga e queijo, no valor de 311 contos, a que corresponde uma multipliçação quase por quatro vezes. Assinale-se a existência de mais de 2.000 bovinos.
Em 1958, a nove anos da existência da Cooperativa, assinale-se uma produção de 16.000 kg de lacticínios, no valor de 711 contos, a existência de 2.582 cabeças de gado, e a venda de 360 bovinos de corte, no valor apro­ximado de 500 contos.
No ano de 1961, há a registar uma produção de lacticínios de 28.000 kg, num valor de 1.313 contos; respectivamente, aumen­tos de 26 e 32% em relação a 1960, demonstrativos do progresso anual e da valorização dos produtos. Note-se que o leite foi pago aos associados a 2$60/litro, quando em 1974, treze anos depois, ainda era pago a 3$00.
O gado bovino sofreu novo aumento em 1961, arroladas que foram 4.133 cabeças (aumento anual de 33%) pela Missão de Inquéritos Agrícolas de Angola, sendo 3.978 cruzadas nativo/holandês/schwitz, 145 schwitz puras oriundas do sudoeste africano e 10 touros fornecidos pelos serviços oficiais. Pesados na balança da Cooperativa foram 404 bovinos, que deixaram 652 contos.
"Para mal dos nossos pecados", o Colonato Estadual da Cela tinha o centro a escassos 62 km, e era forte demais a ambição de integrar o nosso povoamento livre - liberdade conquistada a duras penas e trabalhos - para ser absor­vido pelo "Golias Estadual", num singular socialismo de estado. Na Cela, o Estado investira mais de um milhão de contos, a ponto de transportarem para a Vila de Santa Comba uma igreja igual à de Santa Comba Dão. O Estado tudo fornecera aos colo­nos da Cela: casas, terras preparadas, gado, máquinas agrícolas; tudo apoiado por uma burocracia asfixiante. A comparação com o "pequeno David" era chocante, envergonhando Golias e seus mentores!
Os povoadores açorianos e a sua Cooperativa sempre primaram por colocar acima de tudo o seu trabalho, iniciativa e liberdade pessoais contra a mediocridade e burocracia.
Em 1958 foi inaugurada a Escola Primária e nomeada professora própria. Nessa inauguração, foi oferecido, pelo Senhor Governador Geral um instrumental para a filarmónica em formação, com "a prata da casa" abrilhan­tando as Festas do Divino Espírito Santo!
Estava programado e em breve veríamos a sua construção: o Posto Sanitário e a colocação de um enfermeiro, que iria prestar uma assistência diária a todos os habitantes da região, sem excepções.

Progresso - A década 1960/1970 foi um tempo de progresso assinalável. Passaram os tempos duros e difíceis, que Dutra Faria assinalou assim: "Em 1951 o velho Faustino possuía 2 vacas, 1 junta de bois, 1 carro de bois igual aos dos Açores; em 1954, possuía 80 cabeças de gado bovino e 1 moto nova, e podia matar 1 porco todos os meses."
"Estes descobriram também a sua Ilha! Sem uma palavra de retórica. Silenciosamente. Humildemente. Sem um gesto de propaganda, estes açorianos fizeram maior, no que lhe cabia, o mundo lusíada. Levando as vacas para o pasto, mungindo o leite, batendo a manteiga, fabricando o queijo. Podando as macieiras e os araçaleiros. Plantando as couves e os inhames, semeando o milho. E fazendo o sinal da cruz, ao sentarem-se à noite, exaustos, mas satis­feitos consigo próprios, diante de um grande prato de sopa de abóbora e batata doce, polvilhada de canela."
Em 1960, foi colocado em S. Jorge do Katofe, um ajudante de pecuária, que faria as vacinações do gado e todos os outros tratamentos que não exigiam a presença do médico veterinário, colocado na sede do Distrito, abran­gendo uma área tão grande como Portugal Continental.
Este apoio oficial foi imprescindível, ao mesmo tempo em que os povoadores desenvolviam e ensaiavam novos maneios dos rebanhos: tanques banheiros para banhos carracícidas semanais ou quinzenais, parqueamentos com arame farpado, de todo o perímetro das fazendas e sua divisão em parques, ensaios de forragens e desbravamen­tos totais ou parciais.
A Junta Provincial de Povoamento enviou para Katofe uma brigada, chefiada por um agrimensor, a qual tinha por missão medir e legalizar as fazendas, ao mesmo tempo tendo em conta os terrenos das aldeias nativas. Principiou pelas fazendas já estabelecidas no perímetro da já referida Reserva do Estado, abrangendo um raio de 20 km, englobando os vales do Rio Katofe e seus afluentes Mussoe, Kangombe, Kianza, Mussanza e outros, rodea­dos pelas cordilheiras de nomes de sabor africano, Iengo, Tongo, Midanda, Kassamba, Mussanguir, que, em dias friorentos de cacimbo (brumas nocturnas e matinais) ou em noites deslumbrantes de luar, pareciam deixar entrever a silhueta da sua ilha distante...
À medida que terminava o trabalho de campo, por despacho do Secretário Provincial do Fomento Rural, eram publicadas no Boletim Oficial de Angola as concessões provisórias, até que os concessionários comprovassem o total aproveitamento, prazo em que eram emitidos os alvarás definitivos, de plena posse. Já emitidos em 1975.
A requerimento da Cooperativa, os Serviços de Obras Públicas construíram o Internato Escolar, gerido por moni­tores educativos, destinado a receber alunos matriculados na Escola, cujos pais viviam em fazendas distantes da povoação, além de alguns de outras áreas com o mesmo problema.


A Escola e o Internato Escolar durante o interregno da guerra civil, em 1991.



Pelo Governo do Distrito foi executada a obra de abastecimento de água potável à povoação, com distribui­ção ao domicílio.
Igualmente o Secretário Provincial das Obras Públicas mandou aproveitar o antigo açude do Rio Katofe e res­pectiva vala de conduta de água, cedido graciosamente, a fim de mover uma turbina hidroeléctrica para fornecer electricidade à povoação. O Engenheiro Abecassis, antigo Governador do Distrito de Angra, tinha experiência aqui obtida. Os últimos dois melhoramentos raramente existiam em Angola em povoações de igual categoria, per­mitindo aos habitantes uma muito melhor qualidade de vida. À sombra destes nasceram vários outros: casas de habitação, como segunda casa de alguns fazendeiros; pensão-restaurante muito afamada, oficina de reparação de carros e tractores; dois cafés, três casas comerciais, além da Cantina de Cooperativa, três casas para funcio­nários do Estado. Além da Escola, Posto Sanitário e Posto Veterinário, já referidos. O pequeno mas actuante Colonato Açoriano de S. Jorge do Katofe continuava não só em frente em desenvolvimento económico, mas tam­bém em progresso sócio-cultural.
E, como pólo cultural, foi reconstituída e acrescentada a chamada Casa do Espírito Santo, no Largo da Igreja, onde desde os anos cinquenta se realizavam as grandes e seculares Festas do Divino Espírito Santo; das promessas, da alegria, da abundância, da solidariedade! Da Terceira Pessoa, que é o "Rei da Alegria"! Nela vi deslizarem as lágrimas de saudade, a um engenheiro natural da Praia, perante a Benção das Esmolas, iguais às da sua infância!...


Aspecto da última Casa do Espírito Santo em 2003, apresentando as marcas da destruição e abandono.

Na Casa do Espírito Santo, sentavam-se à primeira mesa cerca de mil pessoas! Como diziam os camionistas que percorriam as estradas de Angola, S. Jorge do Katofe era a única terra da Província onde se comia e bebia de graça durante o período das Festas, em boa e alegre companhia. Chegaram a abater-se uma dúzia de bois.
Destas Festas testemunhou o Bispo Angolano, de etnia bantu, que presidiu às Festas, D. Zacarias Kamuenho, hoje Arcebispo de Lubango, e no jantar festivo afirmou: "Li e estudei os Evangelhos, e a história dos ágapes tradicionais dos primeiros cristãos; mas nunca julguei que existisse em pleno Séc. XX, tal manifestação de fraternidade cristã."
Voltemos porém um pouco atrás no tempo. No fim da década de sessenta, esfumado o sonho de levantar uma fábrica de lacticínios em Katofe, com o apoio imprescindível do Estado, deliberou-se que o leite produzido pelos sócios da Cooperativa fosse incorporado na Fábrica da Cela, a 40 km, pertença do Estado; esta em breve seria transferida para uma sociedade privada, recém criada, a Empresa de Lacticínios de Angola - E.L.A., cujas acções pertenciam: 50% aos lavradores/produtores de leite, que livremente as adquiriam; 40% à firma do ramo Martins & Rebelo, muito conhe­cida nos Açores e no Continente; e 10% à Junta Provincial de Povoamento, como fiel de balança. Do Conselho de Administração da E.L.A. veio a fazer parte, como produtor e accionista, o presidente de "A Açoreana". No início dos anos setenta, a E.L.A. mandou construir, à ilharga do Rio Katofe e fronteiro à povoação, um moderno posto de recep­ção de leite, com todos os requisitos mais modernos de refrigeração e higienização, ímpar no espaço português, que em breve forneceria leite de primeira qualidade à Central Leiteira de Luanda, prestes a ser inaugurada.
A Cooperativa "A Açoreana", com a sua Cantina, continuava a fornecer aos seus associados rações para as vacas leiteiras e tudo o mais que necessitassem a preços módicos, além de todo o apoio logístico necessário.
Muito se havia progredido: dos primeiros pagamentos anuais de 49 contos, atingia-se uma média superior a 1.000 contos mensais, quantia muitas vezes superior. Na terra de Angola o horizonte do progresso não tinha limi­tes: quem produzia 10, 50 ou 100 seria capaz de atingir os 1.000! O mesmo espírito se conseguiu implantar em S. Jorge do Katofe! O apoio do Estado não servia como muleta, mas como alavanca ao espírito de iniciativa, traba­lho e boa administração dos escassos recursos da Cooperativa e dos seus associados. Obra de compreensão pluri­racial, de progresso técnico e desenvolvimento, se possível mais perfeito à medida que o tempo passava, e, por necessidade, muito mais barato que outras formas de socialismo de estado, nesse tempo existentes em Angola.
Será que o povoamento implantado em S. Jorge do Katofe não possuía defeitos e falhas? Como obra de homens, modestos ainda por cima, teria a sua cota parte de insuficiências; porém passou o tempo de as apontar, ultrapassadas por dolorosos acontecimentos.
O desenvolvimento não era só económico, mas igualmente sociocultural. Saídos da Escola de S. Jorge do Katofe, muitos dos seus filhos espalhavam-se já pelos liceus de Angola, e já oito deles frequentavam a novel Universidade de Luanda e o Seminário Arquiepiscopal, em variados cursos - Letras, Veterinária, Medicina, Engenharia Civil, Teologia e Filosofia - prontos a contribuírem para o progresso da sua pequena terra e da grande Angola! Mesmo hoje, com o desenvolvimento da educação, será difícil que uma freguesia açoriana de 600 habi­tantes possua o mesmo ratio de universitários!...

Histórias - Como episódios significativos das vivências na Décima Ilha resumo alguns:
I - A tia Maria do Rosário, oitenta e tal anos ainda rebitesos, todos os dias, pela tarde, rezava o seu terço. E uma bela tarde tanto andou que se perdeu no mato, só sendo encontrada ao outro dia. Daí em diante, a tia Rosário sempre lembrava às visitas a noite em que as onças (leopardos) não conseguiram comer a velhinha, trepada numa árvore e protegida pelo rosário de Nossa Senhora.
II - Nos anos cinquenta, visitava S. Jorge do Katofe um jornalista suíço. A certa altura, disse para o seu acompa­nhante: «Uma autêntica paisagem do Minho!» Foi-lhe explicado que as mulheres e homens que remodelaram esta nova paisagem eram descendentes de várias origens, entre elas o Minho!...
III - De visita à Décima Ilha, um agrónomo, jorgense por sinal, depois de ver, observar e fotografar, desabafou: «Fora das nossas ilhas, nunca vi paisagem que tanto me lembrasse os Açores!»
IV - Bastante conhecido em Angola, o Eng.o Boaventura Gonçalves, terceirense, exímio construtor de estradas, hoje falecido, necessitou baixar ao Hospital de Luanda para tratar da saúde. Acabou por constatar que muitos dos empregados nativos eram da zona de Kibala/Katofe, os quais lhe falavam dos tchindeles (europeus), que começavam a desbravar e povoar a zona de onde eram naturais. Os "sulianos" eram boa gente, pagavam sem­pre os prejuízos do seu gado nas lavras e até, numa dificuldade, emprestavam dinheiro às suas famílias. O Eng.o Boaventura, conterrâneo dos "sulianos", passou a ser mimado, chegando a enciumar os outros doentes!
V - Uma bela noite de luar africano, feiticeiro, a povoação foi acordada por urros tremendos. Não sendo zona de leões, na manhã seguinte verificou-se ter sido atacado um curral perto e morta uma nema (novilha). Só podia ser leão... e alguns caçadores amadores resolveram fazer uma mutala em cima de uma árvore sobranceira ao curral, e ao cair da noite trataram de subir à árvore, o último de "bofes à boca", pois já sentiam uma restolhada!... Seguiu-se uma autêntica fuzilaria e os habitantes saíram à rua a espreitar os resultados da guerra... Em breve chegaria uma carrinha trazendo o leão, bicho imponente, motivo de fotos e falatório!... A fêmea viria a ser envenenada numa fazenda próxima, depois de matar outro bovino. Do episódio ficaram até hoje as tro­vas do poeta popular, mestre de viola e animador de tantas noites de chamarritas e bailhos, mestre João da Luz, há anos falecido na Terceira.

Fim do sonho - Estamos no ano decisivo de 1974: 25 de Abril, suposta alvorada de esperança, dado que em S. Jorge do Katofe todos estavam de acordo com a independência, para todo o povo angolano; de paz, ordem e progresso. Por coin­cidência, nesse mesmo dia deslocou-se à Administração do Concelho uma delegação de lavradores com as suas carrinhas carregadas de leite, a fim de pedir ao Governador do Distrito a sua interferência junto do Governo, com vista à subida do preço do leite dos 3$00/litro para um preço que compensasse o produtor. Aí tivemos conheci­mento do que se passava em Lisboa, nesse dia.
Em 26 de Setembro de 1974 comemoram-se as Bodas de Prata da Cooperativa “A Açoreana”; um tempo muito curto na vida de um povo, mas tempo de alegria, de reflexão e progresso imparável. Como corolário, a Junta de Povoamento acabava de ligar todas as fazendas com estradas rurais com pavimento de laterite, levando à estrada principal asfaltada, ao Posto de Lacticínios e à povoação.
Porém, a partir dos meados do ano de 1975, os açorianos do Katofe foram confrontados com a dura, amarga e triste realidade: a independência não seria calma e pacífica, como se antevira um ano antes. A gente de paz e de trabalho de S. Jorge do Katofe, como a maioria dos euro-angolanos, seria obrigada a abandonar tudo o que cons­tituía o seu mundo: os seus haveres, alguns trazidos dos Açores, os seus mortos, as suas próprias recordações, as suas vivências multiraciais. Com prejuízo de todo o povo angolano. No último dia da nossa estadia em Katofe, disse-nos um chefe de aldeia (soba) afro-angolano: “Vocês ainda têm uma terra para onde partirem, nós vamos ficar aqui a morrer de fome, de guerra e de doença!” Prova provada de que os euro-angolanos constituíam o cimento dessa Nação. Veja-se o que veio a acontecer até hoje com a trágica e irresponsável descolonização...
Em Agosto e Setembro inicia-se a partida: famílias inteiras através de Angola em direcção à África do Sul; de avião até Lisboa, para os Açores, Estados Unidos, Venezuela, Brasil e Canadá. Diáspora de gente lusíada em busca de oásis de Paz!...
Para trás ficava tudo, além do mais cerca de 20.000 cabeças de gado bovino; para dali a um ano serem ape­nas 600, até que nada mais sobrou!

Homenagem - Não posso encerrar esta memória sem lembrar os já falecidos, dos dezanove associados fundadores da “A Açoreana", em Angola: João Alves de Oliveira, o afamado João do Katofe, e também João Leal, coração maior que o corpo, sócio n.o 1, o primeiro a ser sepultado no cemitério do Katofe, quando até aí se fazia na Kibala a 15 km. Ainda, em Angola: José do Rosário, José Leal de Oliveira e Braúlio Teixeira de Matos. Nos Açores: João Faustino da Silveira, José Teixeira de Matos, José Lopes dos Santos e João Bettencourt. Na Califórnia: Emílio Dias, Manuel Herculano de Matos, António Alves de Sousa; e na Costa Leste norte-americana: João Rodrigues. Doze dos dezanove. Não seria possível mencionar mais nomes, dos que se inscreveram ao longo dos anos, mas aqui fica a minha homena­gem simples mas sincera a essas mulheres e homens - jorgenses de escol!
Em memória de todos, ouso transcrever os versos do poeta angolano Vieira da Cruz:

COLONO

A terra que lhe cobriu o rosto
e lhe beijou o último sorriso,
foi ele o primeiro homem que a pisou!

Ele venceu a terra que o venceu.
Ele construiu a casa onde viveu...
Ele desbravou a terra heroicamente,
sem um temor, sem uma hesitação
- terra fecunda que lhe deu pão
e lhe floriu a mesa de tacula...

Foi arquitecto e foi também pintor,
porque pintou de verde a sua esperança...

Esculpiu na própria alma um sonho enorme,
Por isso foi também grande escultor!

O que aprendeu foi Deus que o ensinou,
lá na floresta virgem, imensa catedral,
onde tanta vez ajoelhou!


E assim a Décima Ilha dos Açores se foi incrustando na bruma da memória, vivência que foi realização plena, saudade que perdurará...
Permitam-me terminar, pela pena do grande poeta Fernando Pessoa: “Valeu a pena? Tudo vale a pena, se a alma não é pequena!...”.

Bibliografia
*Boletim Oficial de Angola - III Série, n.o 48 de 7/12/1949.
*Estatutos da Cooperativa "A Açoreana", S.C.L.R.L.
* Relatório Impresso e Contas de 1961.
*Apontamentos, exposições e escritos contemporâneos dos acontecimentos.
*Jornal "Diário Insular" de 25/11 /1954, 26/11/1954, 08/03/1958, 09/10/1958, 11/11/1958 e 28/06/1961.


Nota: atualmente, o autor tem 87 anos e reside em Angra do Heroísmo, ilha Terceira, Açores.

terça-feira, abril 24, 2007

NOSTALGIA E HISTÓRIA

Quando me reporto freqüentemente a estórias vividas no passado, não o faço por nostalgia, mas por fidelidade ao meu destino e por imperativo de contribuição a uma visão histórica.

Ao conversar com amigos da infância e da juventude, principalmente, os residentes no hemisfério norte, sinto neles uma abordagem nostálgica relativamente ao passado vivido em Angola. Já, quanto aos residentes no Brasil, não lhes noto a mesma atitude na recordação das vivências angolanas.

Para se entender a razão da afirmação anterior, convém refletir o que se entende por nostalgia. O termo foi originalmente cunhado pela junção de nostos, “voltar para casa”, com algos, “dolorido/desejar”, ao se referir a "uma doença dolorida que uma pessoa sente porque ela deseja retornar para a sua casa, sentindo pena ou medo de não ver/ter aquilo outra vez". Entre os séculos XVII e XIX os médicos diagnosticavam a nostalgia como uma doença, tendo havido casos que resultaram em morte, por isso, muitos soldados em guerra foram tratados com sucesso ao receberem licença para retornar às suas casas.

Assim, o neologismo nostalgia é muito usado para retratar o sentimento de pessoas que lembram as suas origens, geralmente distantes física ou temporalmente, ao sentir saudades de um tempo vivido, idealizado de forma irreal. É isto o que eu interpreto em muitos dos meus amigos que vivem, por exemplo, nos Estados Unidos da América. Parece que as benesses materiais que lhes foram trazidas em maior abundância pelos dólares não lhes preencheram um certo vazio na alma, o que não se passa com os menos aquinhoados que aportaram no Brasil.

Poderia dizer que o Brasil, quiçá, pela maior similaridade com a terra de origem, nos transmite uma visão nietzschiana sobre o destino. Para Nietzche, não se trata de olhar o destino com visão fatalista, como algo que arrasta quem o rejeita ou que inexoravelmente virá, mas como algo que está dado e que não pode ser mudado ou revivido. Portanto, nessa visão, resta-me amar a vida, amar cada ocorrência, tudo o que me sucedeu tal como ocorreu, na certeza de que “tudo o que não me mata me fortalece”, como dizia o filósofo.

O que dizer, então, das múltiplas frustrações, contrariedades e dificuldades vividas com a nossa experiência da saída de Angola? Simplesmente, amá-las! Isso significa amar a vida, isto é, o destino! Amar o destino é como tomar uma decisão sobre a vida, assumir a responsabilidade sobre o seu script e arcar com as conseqüências que dele nos advêm. Com esta visão eu escrevo sobre o Catofe, pois já foi comprovado pela Psicologia que as bases da nossa vida afetiva foram moldadas na infância e juventude e que reviver antigas experiências sem nostalgia é uma forma de nos reconciliarmos com a nossa história.

Ser responsável pelo destino ou história da nossa vida é ter sempre presente a divisa: “burn the bridge behind you”, ou seja, “queime a ponte que acabou de atravessar”. Após, incendiar a ponte, eu posso lançar um olhar para trás para admirar as belezas das terras do outro lado do rio, sem que isso faça crescer em mim o desejo de retroceder e sem me impedir de olhar as belezas na nova margem que acabei de alcançar... Aplica-se aqui, com muita propriedade, uma parábola de Buda que passo a contar no parágrafo que se segue.

“Certa vez, um homem, ao fim de uma longa viagem, chegou a um rio. Desejou alcançar a margem oposta, que lhe pareceu mais suave e segura. Então, construiu uma jangada com paus e vimes encontrados na margem de origem e atravessou com segurança o rio. Ao alcançar a margem oposta, ele pensou: ‘esta jangada foi-me muito útil para a travessia do rio; não a abandonarei, levá-la-ei comigo’. Assim, passou a carregar um fardo desnecessário. Pode este homem ser considerado sábio?” Ao sairmos de Angola, fizemos a grande travessia do rio da nossa vida de uma margem para a outra; não podemos fazer de qualquer coisa que trouxemos da nossa procedência – a jangada de paus e vimes – algo que se torne para nós um fardo desnecessário. A tendência humana é fazer da vida uma sucessão de apegos e sofreguidão, que tendem a produzir ilusões e sofrimentos. Precisamos somente de reviver antigas experiências sem nostalgia para nos reconciliarmos harmoniosamente com a História.