É caso para recitar a canção açoriana:
Mudam os tempos
E as vontades...
Mudam os ventos, pensamentos e vaidades.
Tudo passou,
Quase esqueceu,
E o que ficou
marcas deixou
Do que morreu!
Um grande abraço do Kabiá-Kabiaka.
Aqui cumpro uma das minhas missões: ser criativo pela escrita. Escreverei muito, sobre qualquer assunto que me der na telha... Sem nostalgia, mais sobre a minha infância e juventude em ANGOLA, o país onde nasci... Contudo, eu não vivo o passado, nem vivo no passado... EU VIVO O PRESENTE E NO PRESENTE! A verdade é que me deslumbro continuamente com as boas lembranças que trago na memória e esqueço de me ressentir das que nunca terei!
Um esboço do Kimbanda Duzentos.
Família de Emílio Dias (Kimbaça para os nativos), 1 dos 3 pioneiros, com o primeiro tractor adquirido pela lavoura no Katofe.
Colonização - Passados cinco anos, adaptados à terra e ao clima, resolveram os três lançar-se, por sua conta e risco, estabelecendo-se a 17 km da Kibala, junto à estrada de Luanda/Huambo, às margens do Rio Katofe; em vales de boas terras para sementeiras de milho e arroz e boas pastagens para a criação de gado; fundando também um pequeno comércio, que servia de apoio e financiador da agricultura. "Boas terra para tudo, menos para os homens", opinavam os entendidos! Na verdade o clima era duro e a terra infestada de mosquito e malária. No entanto, aqueles homens eram corajosos, não estavam dispostos a desertar! Contudo, em 1941, pelo Natal, pagaram o seu primeiro e doloroso tributo, falecendo o André Oliveira vitimado pela biliosa palúdica, que, naquela época, não perdoava...
Porém, dez anos passados - 1945 -, já possuíam lavouras de milho, de arroz, pomares e hortas e uma manada de cento e tal bovinos, dezenas de porcos e um pequeno rebanho de cabras e ovelhas; matéria prima para célebres caldeiradas de cabrito e borrego! Possuíam ainda dois moinhos hidráulicos, os únicos na área da Kibala, mercê de um açude construído no Rio Katofe, que ainda fornecia água para regar o arroz. Do rebanho de bovinos, exploravam as vacas leiteiras, cujo leite era aproveitado no fabrico de manteiga e queijo, vendidos nas vilas dos arredores.
Em 1945 admitiram um novo sócio, Vicente Teixeira de Matos, bem mais jovem, de uma família jorgense da Ribeira Seca, radicada nos arredores da cidade do Huambo.
O autor com 18 anos no final dos estudos no Liceu de Angra do Heroismo, quando desistiu de prosseguir estudos universitários no curso de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa e resolveu viajar para Angola.
O autor logo após a sua chegada a Angola.
O autor quando do serviço militar como furriel miliciano, em Nova Lisboa, Huambo, antes de ir para o Katofe.
O autor - Kilamba para os nativos - já na lavoura do Katofe com o trator Massey Harris da firma Oliveira & Dias.
O autor com a sua esposa Maria Bernardete, com quem casou por procuração com 30 anos em dia e horário em que estava a procurar vacas no mato do Katofe.
O autor e a sua família extensa, em 1954. Da esquerda para a direita: José Teixeira de Matos (pai), Noémia da Silveira (madrasta), Vicente Matos, Zeca Matos (filho no colo), Maria Bernardete (esposa), Lúcio Matos (filho, no colo), Estêvão Silveira Coelho (sogro), Noémia de Fátima (irmã cassula), Laudelinda Cabral (sogra) e Arnaldo Silveira Coelho (cunhado).
Vicente Matos, em 1955, aos 35 anos, com dois dos seus sete filhos do Katofe.
Os primeiros filhos açórico-angolanos do Katofe, lamentavelmente, espalhados por Portugal, Brasil, EUA e Canadá.
O pioneiro Emílio Dias na eira de secar o milho com alguns rebentos açórico-angolanos, Lúcio Matos, São Dias, Idalina Dias, Zeca Matos, Maria Ângela Dias e Linita Dias (da esquerda para a direita).
A assistência religiosa foi desde o início prestada pela Missão Católica de Kibala, numa casa particular. Em 1 de Setembro de 1952, Sua Excelência Reverendíssima o Arcebispo de Luanda, benzeu a primeira pedra da pequena capela, que viria a ser dedicada ao padroeiro S. Jorge pelo mesmo Arcebispo, em 1954. Esta capela viria a ser reconstruída mais duas vezes, transformando-se numa bela igreja, que não envergonhou os seus construtores. Deve assinalar-se que alguns povoadores contribuíram para estas obras com quantias superiores às que dispenderam nas suas próprias casas. Não negando a sua generosidade e a sua fé! Nela seriam baptizados e depois crismados os seus descendentes e continuadores. Nela acabariam por casar alguns dos novos jorgenses.
Igreja de S. Jorge do Katofe: primeira reconstrução, em Dia de Pentecostes, e segunda reconstrução, em 1970.
Alguns dos jovens do Katofe em dia de casamento, no início dos anos 1970.
A igreja depredada atesta a destruição e a desolação trazidas pela guerra insana (2003).
Em 1952, a pedido da Cooperativa, o Estado legislou a criação de uma Reserva do Estado, de 52.000 hectares, onde se implantariam as fazendas dos povoadores e se reservariam os terrenos para uso comunitário das aldeias nativas, como era norma do seu direito consuetudinário. No futuro viriam a ser, mais ou menos, 20.000 hectares para fazendas e 32.000 hectares para aldeias, os primeiros completamente aproveitados em 1975.
A fim de exemplificar o crescimento económico da Cooperativa e seus associados, à falta dos números que todos os anos eram publicados nas contas da Cooperativa (o único que conservamos, impresso, é o de 1961), socorro-me de escritos do "Diário Insular" de Angra, quase todos da pena do citado jornalista Dutra Faria, "padrinho" do crisma da Décima Ilha dos Açores. Estas crónicas, assim como conferências nas Casas dos Açores de Lisboa e Rio de Janeiro, eram produtos das suas visitas a S. Jorge do Katofe, em 1951 e 1954, e de informações epistolares.
Assim, no ano de 1949 - ano da fundação - assinala-se uma pequena produção de 1.804 kg de manteiga e queijo, no valor de 82 contos. O número de gado existente era de 400 cabeças.
Já em 1955, seis anos depois, a produção era de 6.000kg de manteiga e queijo, no valor de 311 contos, a que corresponde uma multipliçação quase por quatro vezes. Assinale-se a existência de mais de 2.000 bovinos.
Em 1958, a nove anos da existência da Cooperativa, assinale-se uma produção de 16.000 kg de lacticínios, no valor de 711 contos, a existência de 2.582 cabeças de gado, e a venda de 360 bovinos de corte, no valor aproximado de 500 contos.
No ano de 1961, há a registar uma produção de lacticínios de 28.000 kg, num valor de 1.313 contos; respectivamente, aumentos de 26 e 32% em relação a 1960, demonstrativos do progresso anual e da valorização dos produtos. Note-se que o leite foi pago aos associados a 2$60/litro, quando em 1974, treze anos depois, ainda era pago a 3$00.
O gado bovino sofreu novo aumento em 1961, arroladas que foram 4.133 cabeças (aumento anual de 33%) pela Missão de Inquéritos Agrícolas de Angola, sendo 3.978 cruzadas nativo/holandês/schwitz, 145 schwitz puras oriundas do sudoeste africano e 10 touros fornecidos pelos serviços oficiais. Pesados na balança da Cooperativa foram 404 bovinos, que deixaram 652 contos.
"Para mal dos nossos pecados", o Colonato Estadual da Cela tinha o centro a escassos 62 km, e era forte demais a ambição de integrar o nosso povoamento livre - liberdade conquistada a duras penas e trabalhos - para ser absorvido pelo "Golias Estadual", num singular socialismo de estado. Na Cela, o Estado investira mais de um milhão de contos, a ponto de transportarem para a Vila de Santa Comba uma igreja igual à de Santa Comba Dão. O Estado tudo fornecera aos colonos da Cela: casas, terras preparadas, gado, máquinas agrícolas; tudo apoiado por uma burocracia asfixiante. A comparação com o "pequeno David" era chocante, envergonhando Golias e seus mentores!
Os povoadores açorianos e a sua Cooperativa sempre primaram por colocar acima de tudo o seu trabalho, iniciativa e liberdade pessoais contra a mediocridade e burocracia.
Em 1958 foi inaugurada a Escola Primária e nomeada professora própria. Nessa inauguração, foi oferecido, pelo Senhor Governador Geral um instrumental para a filarmónica em formação, com "a prata da casa" abrilhantando as Festas do Divino Espírito Santo!
Estava programado e em breve veríamos a sua construção: o Posto Sanitário e a colocação de um enfermeiro, que iria prestar uma assistência diária a todos os habitantes da região, sem excepções.
Progresso - A década 1960/1970 foi um tempo de progresso assinalável. Passaram os tempos duros e difíceis, que Dutra Faria assinalou assim: "Em 1951 o velho Faustino possuía 2 vacas, 1 junta de bois, 1 carro de bois igual aos dos Açores; em 1954, possuía 80 cabeças de gado bovino e 1 moto nova, e podia matar 1 porco todos os meses."
"Estes descobriram também a sua Ilha! Sem uma palavra de retórica. Silenciosamente. Humildemente. Sem um gesto de propaganda, estes açorianos fizeram maior, no que lhe cabia, o mundo lusíada. Levando as vacas para o pasto, mungindo o leite, batendo a manteiga, fabricando o queijo. Podando as macieiras e os araçaleiros. Plantando as couves e os inhames, semeando o milho. E fazendo o sinal da cruz, ao sentarem-se à noite, exaustos, mas satisfeitos consigo próprios, diante de um grande prato de sopa de abóbora e batata doce, polvilhada de canela."
Em 1960, foi colocado em S. Jorge do Katofe, um ajudante de pecuária, que faria as vacinações do gado e todos os outros tratamentos que não exigiam a presença do médico veterinário, colocado na sede do Distrito, abrangendo uma área tão grande como Portugal Continental.
Este apoio oficial foi imprescindível, ao mesmo tempo em que os povoadores desenvolviam e ensaiavam novos maneios dos rebanhos: tanques banheiros para banhos carracícidas semanais ou quinzenais, parqueamentos com arame farpado, de todo o perímetro das fazendas e sua divisão em parques, ensaios de forragens e desbravamentos totais ou parciais.
A Junta Provincial de Povoamento enviou para Katofe uma brigada, chefiada por um agrimensor, a qual tinha por missão medir e legalizar as fazendas, ao mesmo tempo tendo em conta os terrenos das aldeias nativas. Principiou pelas fazendas já estabelecidas no perímetro da já referida Reserva do Estado, abrangendo um raio de 20 km, englobando os vales do Rio Katofe e seus afluentes Mussoe, Kangombe, Kianza, Mussanza e outros, rodeados pelas cordilheiras de nomes de sabor africano, Iengo, Tongo, Midanda, Kassamba, Mussanguir, que, em dias friorentos de cacimbo (brumas nocturnas e matinais) ou em noites deslumbrantes de luar, pareciam deixar entrever a silhueta da sua ilha distante...
À medida que terminava o trabalho de campo, por despacho do Secretário Provincial do Fomento Rural, eram publicadas no Boletim Oficial de Angola as concessões provisórias, até que os concessionários comprovassem o total aproveitamento, prazo em que eram emitidos os alvarás definitivos, de plena posse. Já emitidos em 1975.
A requerimento da Cooperativa, os Serviços de Obras Públicas construíram o Internato Escolar, gerido por monitores educativos, destinado a receber alunos matriculados na Escola, cujos pais viviam em fazendas distantes da povoação, além de alguns de outras áreas com o mesmo problema.
A Escola e o Internato Escolar durante o interregno da guerra civil, em 1991.
Pelo Governo do Distrito foi executada a obra de abastecimento de água potável à povoação, com distribuição ao domicílio.
Igualmente o Secretário Provincial das Obras Públicas mandou aproveitar o antigo açude do Rio Katofe e respectiva vala de conduta de água, cedido graciosamente, a fim de mover uma turbina hidroeléctrica para fornecer electricidade à povoação. O Engenheiro Abecassis, antigo Governador do Distrito de Angra, tinha experiência aqui obtida. Os últimos dois melhoramentos raramente existiam em Angola em povoações de igual categoria, permitindo aos habitantes uma muito melhor qualidade de vida. À sombra destes nasceram vários outros: casas de habitação, como segunda casa de alguns fazendeiros; pensão-restaurante muito afamada, oficina de reparação de carros e tractores; dois cafés, três casas comerciais, além da Cantina de Cooperativa, três casas para funcionários do Estado. Além da Escola, Posto Sanitário e Posto Veterinário, já referidos. O pequeno mas actuante Colonato Açoriano de S. Jorge do Katofe continuava não só em frente em desenvolvimento económico, mas também em progresso sócio-cultural.
E, como pólo cultural, foi reconstituída e acrescentada a chamada Casa do Espírito Santo, no Largo da Igreja, onde desde os anos cinquenta se realizavam as grandes e seculares Festas do Divino Espírito Santo; das promessas, da alegria, da abundância, da solidariedade! Da Terceira Pessoa, que é o "Rei da Alegria"! Nela vi deslizarem as lágrimas de saudade, a um engenheiro natural da Praia, perante a Benção das Esmolas, iguais às da sua infância!...
Aspecto da última Casa do Espírito Santo em 2003, apresentando as marcas da destruição e abandono.
Na Casa do Espírito Santo, sentavam-se à primeira mesa cerca de mil pessoas! Como diziam os camionistas que percorriam as estradas de Angola, S. Jorge do Katofe era a única terra da Província onde se comia e bebia de graça durante o período das Festas, em boa e alegre companhia. Chegaram a abater-se uma dúzia de bois.
Destas Festas testemunhou o Bispo Angolano, de etnia bantu, que presidiu às Festas, D. Zacarias Kamuenho, hoje Arcebispo de Lubango, e no jantar festivo afirmou: "Li e estudei os Evangelhos, e a história dos ágapes tradicionais dos primeiros cristãos; mas nunca julguei que existisse em pleno Séc. XX, tal manifestação de fraternidade cristã."
Voltemos porém um pouco atrás no tempo. No fim da década de sessenta, esfumado o sonho de levantar uma fábrica de lacticínios em Katofe, com o apoio imprescindível do Estado, deliberou-se que o leite produzido pelos sócios da Cooperativa fosse incorporado na Fábrica da Cela, a 40 km, pertença do Estado; esta em breve seria transferida para uma sociedade privada, recém criada, a Empresa de Lacticínios de Angola - E.L.A., cujas acções pertenciam: 50% aos lavradores/produtores de leite, que livremente as adquiriam; 40% à firma do ramo Martins & Rebelo, muito conhecida nos Açores e no Continente; e 10% à Junta Provincial de Povoamento, como fiel de balança. Do Conselho de Administração da E.L.A. veio a fazer parte, como produtor e accionista, o presidente de "A Açoreana". No início dos anos setenta, a E.L.A. mandou construir, à ilharga do Rio Katofe e fronteiro à povoação, um moderno posto de recepção de leite, com todos os requisitos mais modernos de refrigeração e higienização, ímpar no espaço português, que em breve forneceria leite de primeira qualidade à Central Leiteira de Luanda, prestes a ser inaugurada.
A Cooperativa "A Açoreana", com a sua Cantina, continuava a fornecer aos seus associados rações para as vacas leiteiras e tudo o mais que necessitassem a preços módicos, além de todo o apoio logístico necessário.
Muito se havia progredido: dos primeiros pagamentos anuais de 49 contos, atingia-se uma média superior a 1.000 contos mensais, quantia muitas vezes superior. Na terra de Angola o horizonte do progresso não tinha limites: quem produzia 10, 50 ou 100 seria capaz de atingir os 1.000! O mesmo espírito se conseguiu implantar em S. Jorge do Katofe! O apoio do Estado não servia como muleta, mas como alavanca ao espírito de iniciativa, trabalho e boa administração dos escassos recursos da Cooperativa e dos seus associados. Obra de compreensão pluriracial, de progresso técnico e desenvolvimento, se possível mais perfeito à medida que o tempo passava, e, por necessidade, muito mais barato que outras formas de socialismo de estado, nesse tempo existentes em Angola.
Será que o povoamento implantado em S. Jorge do Katofe não possuía defeitos e falhas? Como obra de homens, modestos ainda por cima, teria a sua cota parte de insuficiências; porém passou o tempo de as apontar, ultrapassadas por dolorosos acontecimentos.
O desenvolvimento não era só económico, mas igualmente sociocultural. Saídos da Escola de S. Jorge do Katofe, muitos dos seus filhos espalhavam-se já pelos liceus de Angola, e já oito deles frequentavam a novel Universidade de Luanda e o Seminário Arquiepiscopal, em variados cursos - Letras, Veterinária, Medicina, Engenharia Civil, Teologia e Filosofia - prontos a contribuírem para o progresso da sua pequena terra e da grande Angola! Mesmo hoje, com o desenvolvimento da educação, será difícil que uma freguesia açoriana de 600 habitantes possua o mesmo ratio de universitários!...
Histórias - Como episódios significativos das vivências na Décima Ilha resumo alguns:
I - A tia Maria do Rosário, oitenta e tal anos ainda rebitesos, todos os dias, pela tarde, rezava o seu terço. E uma bela tarde tanto andou que se perdeu no mato, só sendo encontrada ao outro dia. Daí em diante, a tia Rosário sempre lembrava às visitas a noite em que as onças (leopardos) não conseguiram comer a velhinha, trepada numa árvore e protegida pelo rosário de Nossa Senhora.
II - Nos anos cinquenta, visitava S. Jorge do Katofe um jornalista suíço. A certa altura, disse para o seu acompanhante: «Uma autêntica paisagem do Minho!» Foi-lhe explicado que as mulheres e homens que remodelaram esta nova paisagem eram descendentes de várias origens, entre elas o Minho!...
III - De visita à Décima Ilha, um agrónomo, jorgense por sinal, depois de ver, observar e fotografar, desabafou: «Fora das nossas ilhas, nunca vi paisagem que tanto me lembrasse os Açores!»
IV - Bastante conhecido em Angola, o Eng.o Boaventura Gonçalves, terceirense, exímio construtor de estradas, hoje falecido, necessitou baixar ao Hospital de Luanda para tratar da saúde. Acabou por constatar que muitos dos empregados nativos eram da zona de Kibala/Katofe, os quais lhe falavam dos tchindeles (europeus), que começavam a desbravar e povoar a zona de onde eram naturais. Os "sulianos" eram boa gente, pagavam sempre os prejuízos do seu gado nas lavras e até, numa dificuldade, emprestavam dinheiro às suas famílias. O Eng.o Boaventura, conterrâneo dos "sulianos", passou a ser mimado, chegando a enciumar os outros doentes!
V - Uma bela noite de luar africano, feiticeiro, a povoação foi acordada por urros tremendos. Não sendo zona de leões, na manhã seguinte verificou-se ter sido atacado um curral perto e morta uma nema (novilha). Só podia ser leão... e alguns caçadores amadores resolveram fazer uma mutala em cima de uma árvore sobranceira ao curral, e ao cair da noite trataram de subir à árvore, o último de "bofes à boca", pois já sentiam uma restolhada!... Seguiu-se uma autêntica fuzilaria e os habitantes saíram à rua a espreitar os resultados da guerra... Em breve chegaria uma carrinha trazendo o leão, bicho imponente, motivo de fotos e falatório!... A fêmea viria a ser envenenada numa fazenda próxima, depois de matar outro bovino. Do episódio ficaram até hoje as trovas do poeta popular, mestre de viola e animador de tantas noites de chamarritas e bailhos, mestre João da Luz, há anos falecido na Terceira.
Fim do sonho - Estamos no ano decisivo de 1974: 25 de Abril, suposta alvorada de esperança, dado que em S. Jorge do Katofe todos estavam de acordo com a independência, para todo o povo angolano; de paz, ordem e progresso. Por coincidência, nesse mesmo dia deslocou-se à Administração do Concelho uma delegação de lavradores com as suas carrinhas carregadas de leite, a fim de pedir ao Governador do Distrito a sua interferência junto do Governo, com vista à subida do preço do leite dos 3$00/litro para um preço que compensasse o produtor. Aí tivemos conhecimento do que se passava em Lisboa, nesse dia.
Em 26 de Setembro de 1974 comemoram-se as Bodas de Prata da Cooperativa “A Açoreana”; um tempo muito curto na vida de um povo, mas tempo de alegria, de reflexão e progresso imparável. Como corolário, a Junta de Povoamento acabava de ligar todas as fazendas com estradas rurais com pavimento de laterite, levando à estrada principal asfaltada, ao Posto de Lacticínios e à povoação.
Porém, a partir dos meados do ano de 1975, os açorianos do Katofe foram confrontados com a dura, amarga e triste realidade: a independência não seria calma e pacífica, como se antevira um ano antes. A gente de paz e de trabalho de S. Jorge do Katofe, como a maioria dos euro-angolanos, seria obrigada a abandonar tudo o que constituía o seu mundo: os seus haveres, alguns trazidos dos Açores, os seus mortos, as suas próprias recordações, as suas vivências multiraciais. Com prejuízo de todo o povo angolano. No último dia da nossa estadia em Katofe, disse-nos um chefe de aldeia (soba) afro-angolano: “Vocês ainda têm uma terra para onde partirem, nós vamos ficar aqui a morrer de fome, de guerra e de doença!” Prova provada de que os euro-angolanos constituíam o cimento dessa Nação. Veja-se o que veio a acontecer até hoje com a trágica e irresponsável descolonização...
Em Agosto e Setembro inicia-se a partida: famílias inteiras através de Angola em direcção à África do Sul; de avião até Lisboa, para os Açores, Estados Unidos, Venezuela, Brasil e Canadá. Diáspora de gente lusíada em busca de oásis de Paz!...
Para trás ficava tudo, além do mais cerca de 20.000 cabeças de gado bovino; para dali a um ano serem apenas 600, até que nada mais sobrou!
Homenagem - Não posso encerrar esta memória sem lembrar os já falecidos, dos dezanove associados fundadores da “A Açoreana", em Angola: João Alves de Oliveira, o afamado João do Katofe, e também João Leal, coração maior que o corpo, sócio n.o 1, o primeiro a ser sepultado no cemitério do Katofe, quando até aí se fazia na Kibala a 15 km. Ainda, em Angola: José do Rosário, José Leal de Oliveira e Braúlio Teixeira de Matos. Nos Açores: João Faustino da Silveira, José Teixeira de Matos, José Lopes dos Santos e João Bettencourt. Na Califórnia: Emílio Dias, Manuel Herculano de Matos, António Alves de Sousa; e na Costa Leste norte-americana: João Rodrigues. Doze dos dezanove. Não seria possível mencionar mais nomes, dos que se inscreveram ao longo dos anos, mas aqui fica a minha homenagem simples mas sincera a essas mulheres e homens - jorgenses de escol!
Em memória de todos, ouso transcrever os versos do poeta angolano Vieira da Cruz:
COLONO
A terra que lhe cobriu o rosto
e lhe beijou o último sorriso,
foi ele o primeiro homem que a pisou!
Ele venceu a terra que o venceu.
Ele construiu a casa onde viveu...
Ele desbravou a terra heroicamente,
sem um temor, sem uma hesitação
- terra fecunda que lhe deu pão
e lhe floriu a mesa de tacula...
Foi arquitecto e foi também pintor,
porque pintou de verde a sua esperança...
Esculpiu na própria alma um sonho enorme,
Por isso foi também grande escultor!
O que aprendeu foi Deus que o ensinou,
lá na floresta virgem, imensa catedral,
onde tanta vez ajoelhou!
E assim a Décima Ilha dos Açores se foi incrustando na bruma da memória, vivência que foi realização plena, saudade que perdurará...
Permitam-me terminar, pela pena do grande poeta Fernando Pessoa: “Valeu a pena? Tudo vale a pena, se a alma não é pequena!...”.
Bibliografia
*Boletim Oficial de Angola - III Série, n.o 48 de 7/12/1949.
*Estatutos da Cooperativa "A Açoreana", S.C.L.R.L.
* Relatório Impresso e Contas de 1961.
*Apontamentos, exposições e escritos contemporâneos dos acontecimentos.
*Jornal "Diário Insular" de 25/11 /1954, 26/11/1954, 08/03/1958, 09/10/1958, 11/11/1958 e 28/06/1961.
Nota: atualmente, o autor tem 87 anos e reside em Angra do Heroísmo, ilha Terceira, Açores.
Quando me reporto freqüentemente a estórias vividas no passado, não o faço por nostalgia, mas por fidelidade ao meu destino e por imperativo de contribuição a uma visão histórica.
Ao conversar com amigos da infância e da juventude, principalmente, os residentes no hemisfério norte, sinto neles uma abordagem nostálgica relativamente ao passado vivido
Para se entender a razão da afirmação anterior, convém refletir o que se entende por nostalgia. O termo foi originalmente cunhado pela junção de nostos, “voltar para casa”, com algos, “dolorido/desejar”, ao se referir a "uma doença dolorida que uma pessoa sente porque ela deseja retornar para a sua casa, sentindo pena ou medo de não ver/ter aquilo outra vez". Entre os séculos XVII e XIX os médicos diagnosticavam a nostalgia como uma doença, tendo havido casos que resultaram em morte, por isso, muitos soldados em guerra foram tratados com sucesso ao receberem licença para retornar às suas casas.
Assim, o neologismo nostalgia é muito usado para retratar o sentimento de pessoas que lembram as suas origens, geralmente distantes física ou temporalmente, ao sentir saudades de um tempo vivido, idealizado de forma irreal. É isto o que eu interpreto em muitos dos meus amigos que vivem, por exemplo, nos Estados Unidos da América. Parece que as benesses materiais que lhes foram trazidas em maior abundância pelos dólares não lhes preencheram um certo vazio na alma, o que não se passa com os menos aquinhoados que aportaram no Brasil.
Poderia dizer que o Brasil, quiçá, pela maior similaridade com a terra de origem, nos transmite uma visão nietzschiana sobre o destino. Para Nietzche, não se trata de olhar o destino com visão fatalista, como algo que arrasta quem o rejeita ou que inexoravelmente virá, mas como algo que está dado e que não pode ser mudado ou revivido. Portanto, nessa visão, resta-me amar a vida, amar cada ocorrência, tudo o que me sucedeu tal como ocorreu, na certeza de que “tudo o que não me mata me fortalece”, como dizia o filósofo.
O que dizer, então, das múltiplas frustrações, contrariedades e dificuldades vividas com a nossa experiência da saída de Angola? Simplesmente, amá-las! Isso significa amar a vida, isto é, o destino! Amar o destino é como tomar uma decisão sobre a vida, assumir a responsabilidade sobre o seu script e arcar com as conseqüências que dele nos advêm. Com esta visão eu escrevo sobre o Catofe, pois já foi comprovado pela Psicologia que as bases da nossa vida afetiva foram moldadas na infância e juventude e que reviver antigas experiências sem nostalgia é uma forma de nos reconciliarmos com a nossa história.
Ser responsável pelo destino ou história da nossa vida é ter sempre presente a divisa: “burn the bridge behind you”, ou seja, “queime a ponte que acabou de atravessar”. Após, incendiar a ponte, eu posso lançar um olhar para trás para admirar as belezas das terras do outro lado do rio, sem que isso faça crescer em mim o desejo de retroceder e sem me impedir de olhar as belezas na nova margem que acabei de alcançar... Aplica-se aqui, com muita propriedade, uma parábola de Buda que passo a contar no parágrafo que se segue.
“Certa vez, um homem, ao fim de uma longa viagem, chegou a um rio. Desejou alcançar a margem oposta, que lhe pareceu mais suave e segura. Então, construiu uma jangada com paus e vimes encontrados na margem de origem e atravessou com segurança o rio. Ao alcançar a margem oposta, ele pensou: ‘esta jangada foi-me muito útil para a travessia do rio; não a abandonarei, levá-la-ei comigo’. Assim, passou a carregar um fardo desnecessário. Pode este homem ser considerado sábio?” Ao sairmos de Angola, fizemos a grande travessia do rio da nossa vida de uma margem para a outra; não podemos fazer de qualquer coisa que trouxemos da nossa procedência – a jangada de paus e vimes – algo que se torne para nós um fardo desnecessário. A tendência humana é fazer da vida uma sucessão de apegos e sofreguidão, que tendem a produzir ilusões e sofrimentos. Precisamos somente de reviver antigas experiências sem nostalgia para nos reconciliarmos harmoniosamente com a História.
Viram que reduzi os meus textos a um único blog... Por que razão? Porque a missão superior de me expressar literariamente é única; vem de uma única fonte, um único despertar, embora muito díspar ou multifacetada, que tem por fim último manifestar as forças criadoras da vida como espelho natural da minha íntima essência sobre a qual procuro me erigir, criando em mim um estado silente de paz e maturidade. Assim, busco continuamente o meu aperfeiçoamento porque não me acho perfeito, mas sou infinitamente perfectível.
Aqui, me sinto profundamente seguro porque – como Clarice Lispector – assumo a consciência que “a palavra é meu domínio sobre o mundo”. Como ela, “enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever”, essencialmente, para encontrar em mim e não fora de mim a verdade que me faz ser teimoso em viver, que me faz caminhar com um sentido, pois sempre quis inventá-lo com a minha verdade. Por isso, e nada mais, nunca aceitei a limitação escravocrata de meramente sobreviver mediante uma “verdade inventada” por outros que pretendem tornar o meu existir passível de ter algum outro sentido, como se fosse fácil me alienar em marionete servidora de interesses inconfessáveis.
E, se você, caro leitor que contempla as minhas letras, as considerar fracas, banais e sem sentido? A essa pergunta resta responder fazendo minhas as palavras do nosso maior poeta-filósofo dos últimos tempos:
“Saber que será má a obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. Essa planta é a alegria dela, e também por vezes a minha. O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns bons momentos de distração de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou me não basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida”.(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, 14). “Conquistei, palmo a pequeno palmo, o terreno interior que nascera meu. Reclamei, espaço a pequeno espaço, o pântano em que me quedara nulo. Pari meu ser infinito, mas tirei-me a ferros de mim mesmo”.(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, 15).
Aqui, procuro tirar-me “a ferros de mim mesmo”, parir meu “ser infinito”, conquistar “palmo a pequeno palmo, o terreno interior que nascera meu”... Quero aqui cultivar a “planta mesquinha no vaso único”da minha essência vizinha para doar-vos, a vós leitores, “uns bons momentos de distração”, o que “tanto me basta”... De vez em quando, jogo aqui uma pedra no pântano da minha zona de conforto que sempre tenta a quedar-me nulo.
Este é o meu exercício contra a solidão; para mim, esta tem pouco a ver com o número de pessoas que me rodeia, pelo contrário, só depende da minha distância de mim mesmo. A minha alma de tímido só consegue se libertar na solidão da escrita. Sempre fui assim. Eu sou a melhor companhia de mim próprio quando escrevo. Todos os que comigo conviveram pessoalmente sabem que sou sincero nisto. Gosto de ficar só... Confesso que normalmente sou tímido e introspectivo porque tenho medo de ser submergido pelo amor excessivo dos outros. Desculpem eu ser eu! Sou bem esquisito, a ponto de eu próprio me achar estranho! Você vai aprender a respeitar-me ao ler-me, porque foi pela escrita que eu me vi obrigado a me respeitar. A escrita é para mim uma catarse – do grego “kátharsis"= "purificação" – limpeza pessoal dos demônios internos e externos que querem me derrubar... Quando esses entes maléficos dão a entender que não há lugar para mim na terra dos homens, onde me converto em ser que nem mesmo eu me suporto, então, por sobrar sozinho, busco refúgio na novidade criativa da escrita, na cascata silenciosa de palavras sempre novas, com quem posso conversar sem contar os minutos... Com elas e por elas, simbolicamente, morro e renasço sucessivamente...
Seja em prosa ou verso, escrevo muito do passado. Já houve pessoas que me escreveram para me chamar a atenção de que isso pode ser prejudicial para mim, me impedir de viver bem no presente e no futuro. Refleti muito sobre isso e cheguei à mesma conclusão de Albert Einstein: “a distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão teimosamente persistente”. Em particular, sobre o meu passado angolano, eu sinto sem saudosismo que “o que passou, passou, mas o que passou luzindo, resplandecerá para sempre”(Johan Goethe). Portanto, a luz que um dia se acendeu em mim continua em mim. É presente e não passou, antes, permanece para sempre.
Claro que a vida só se vive para diante, mas só se compreende mediante um retorno ao passado, como salientou Soren Kiergaard. Que mal há em recordar o que de melhor existiu na minha vida passada? Com isso consigo compreender o que de melhor há em mim. Então, que mal há nisso?
Concentro atenção e máximo cuidado em lembrar o passado com gratidão, para que possa alegrar-me com o presente e encarar o futuro sem medo, numa visão bem epicurista de obter estados moderados de prazer, tranquilidade e libertação. Isso é vida e beleza e o que é vivo e belo em nós não se perde, porque a vida vai sempre em frente para a eternidade. Não lembro o passado com saudade e melancolia, porque tudo o que fui mais puro de mim no passado prossegue em mim. Como dizia Marguerite Yourcenar, “quando se gosta da vida, gosta-se do passado, porque ele é o presente tal como se sobreviveu na memória humana”. Não sou nada dado a saudades e melancolias! Quiçá, por isso nunca quis voltar a Angola desde que saí de lá, em 1975, apesar de ter tido alguns convites para fazê-lo...
O grande pai da psicologia Carl Gustav Jung disse que “a vida é a história de um inconsciente que se realizou”. É bom escrever sobre o passado como se fosse um romance, porque o verdadeiro historiador é o romancista do passado e não um simples colecionador de datas e documentos. Como disse Goethe, a melhor maneira de se livrar do passado é escrever a sua história. Um dia cada um de nós será apenas uma memória longínqua... É importante alguém escrever a história de S. Jorge do Catofe, em crónicas e narrativas. Muitos descendentes de catofianos, senão, os próprios, se edificarão com esses escritos porque, como diz Isaiah Berlin, em “Uma Mensagem para o Século XXI”:
“Somente os bárbaros não têm curiosidade em saber de onde vieram, como chegaram a ser o que são, aonde parecem estar indo, se desejam rumar nessa direção e, se querem, por quê, e, se não, por que não”.
Só os defensores da barbárie, a que grassou nas savanas do Catofe em 1975, os mercadores da morte e do medo, podem ter interesse em que não se fale das coisas belas que os açorianos ali erigiram como um marco para a eternidade. Os descendentes dos Catofianos – açorianos do Catofe – sentirão muito orgulho e altivez pelos feitos dos seus antepassados e verificarão nas suas próprias vidas, na Europa ou na América, que o seu futuro mais brilhante está alicerçado num passado intensamente vivido em terras feiticeiras de África.
Será que os meus escritos sobre o Catofe evocarão perdas que penalizarão alguns catofianos? Eu penso que não. Sobre as perdas materiais, eu tenho verificado que praticamente todos os catofianos adotaram uma visão filosófica bem estoica.
Aos amantes do “politicamente correto”, que leem os meus rabiscos com olhar crítico de condenação, devo responder que ser feliz me absorve totalmente, por isso, não tenho tempo para mais nada. Essa a explicação para o bloqueio aos comentários de leitores. Certamente, encontrarão o meu e-mail nas tertúlias da internet, porém, desde já advirto, quaisquer críticas ou agressões serão apagadas imediatamente, portanto, não merecedoras de qualquer resposta. Respeito todas as opiniões, por isso, não me interesso por discutir opiniões; na filosofia de Fernando Pessoa, de quem sou um deslumbrado admirador, “ter opiniões é não sentir”e “sentir é criar”, “sentir é pensar sem ideias, e por isso sentir é compreender, visto que o Universo não tem ideias”. Em conclusão, só escrevo sobre o que sinto e só quero receber escritos de quem sente e compreende o Universo comigo.
Um grande abraço do