domingo, setembro 30, 2007

ACORDO ORTOGRÁFICO

Recentemente, ressuscitou a temática do decantado Acordo Ortográfico entre os países lusófonos, visando tornar a Língua Portuguesa – a minha Pátria é a Língua Portuguesa, como já disseram Guerra Junqueira e Fernando Pessoa – uniforme, pelo menos na escrita, em todo o mundo, uma vez que ela assume diversos matizes quanto à fala e significado de certas expressões, como adiante elucidarei.
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Eu penso que existe mais unidade na diversidade linguística popular do que na unicidade imposta por meia dúzia de iluminados, todavia existem – como sempre – grandes interesses econômicos, aquém e além Atlântico, que tornam conveniente esse acordo, basta lembrar as possibilidades de venda dos livros didáticos brasileiros nas escolas dos PALOP ou o velho sonho português de ver a língua lusíada ser adotada como uma das línguas oficiais de trabalho da ONU.

Lembro que a tentativa de celebração do Acordo Ortográfico, entre Portugal, Brasil e PALOP, já é anterior a fevereiro de 1987, quando eu demandei definitivamente plagas tupiniquins. Nessa época, o dito acordo foi muito atacado pelos puristas lusos, a tal ponto que a sugestão de abolir o acento na antepenúltima sílaba das palavras proparoxítonas recebeu um texto num jornal, mais ou menos assim, quanto a um diálogo em que um amigo perguntava a outro se tinha “cágado” em casa:

- Você tem cagado no jardim?
- Não, eu tenho cagado em casa.
- Onde você tem cagado?
- Eu tenho cagado na banheira.


Claro, imagino que esses equívocos foram saneados, ao fim de mais de vinte anos de estudo e debate, do acordo que dizem ser agora para valer. Porém, o Acordo Ortográfico continua ter os seus detratores em todos os países lusófonos com a principal argumentação de que o português que se fala e vive em Portugal, Brasil e Angola, por exemplo, não é o mesmo.

Efetivamente, assim é, sobretudo, para expressões e interpretações de uso popular. Já nos primeiros anos de escola aprendi que havia palavras de português que eram de origem popular e outras de origem erudita. Por que é que a origem popular de certas palavras da nossa língua só pode ser válida se ocorrer no “jardim à beira-mar plantado”, onde só habitam 10 (3,33%) dos mais de 300 milhões de lusófonos? Então, por que é que os angolanos já adotam a palavra “muambeiro” como sinônimo de “candongueiro”, sendo esta a única palavra que se usava em 1975, quando saí da minha terra natal? Certamente, por influência das novelas brasileiras, também, muito apreciadas em Portugal... Por que é que os portugueses adotam atualmente o termo “carrinha”? Certamente, por pura influência dos exilados de Angola que foram acolhidos em Portugal... Portanto, a língua é uma entidade viva e se molda mais pelo amplo convívio dos povos e não por acordos políticos e técnicos. Uma coisa é certa: muitas regras do acordo ortográfico levarão muitos anos até serem absorvidas pelos diversos povos lusófonos e algumas nunca vingarão. Quem viver, verá!

Malgrado o esforço dos especialistas dum lado e outro do Atlântico, certas palavras assumirão sempre significados bastante diferenciados em várias regiões e povos, por exemplo, analise-se alguns sentidos para a palavra “liso”:
  1. Franco, lhano, sincero, leal (sentido figurado).
  2. Pessoa esperta, difícil de ser apanhada, escorregadia (Florianópolis, Santa Catarina, Brasil).
  3. Sem dinheiro (uso popular em Portugal e no Nordeste do Brasil).
Em 1988, ao vir morar em Santa Catarina, ao dizer que estava “liso”, para significar a minha penúria financeira, alguém me respondia: “Ai é, tu és liso?”. Então, entendi que liso é alguém muito “vaselina”, pessoa pouco afeita a se comprometer e com um discurso dúbio ou bem agradável aos ouvidos de toda a gente. Então, me esclareceram que ficar sem dinheiro é ficar “duro”, o que em Portugal e Angola daria origem a interpretações bem maliciosas. Como dizia repetidamente a minha avó Laudelinda: “cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso”.

Cabe aqui recordar o trecho de uma poesia de gaúcho (o povo que se considera “o mais macho do Brasil” ou “machucado”, como dizem os “Catarinas”), numa veia bem “gaudéria” (malandra), que elucida o uso do termo “liso” no Sul do Brasil:

C... de lombo liso
É como um jundiá fora d’água
Que a china olha com mágoa
E agarra com devoção
É mais liso que sabão
Cruza matos e espinhos
No meio da escuridão

Recorde-se que o jundiá é um tipo de bagre, praticamente, sem escamas; quanto ao termo C..., você interpreta como quiser – dê asas à sua imaginação – porque é escrito e usado com o mesmo sentido em todos os países lusófonos.

Como o Acordo Ortográfico é mais obra de políticos do que dos povos lusíadas, então, não poderíamos deixar de fazer aqui uma referência à “lisura” de quem nos governa, quando entra num estado de eminente “dureza”, conforme um blog brasileiro:

O blog do Noblat e o ex-blog de César Maia esquentam a chapa de Okamotto. O prefeito do Rio divulga os números das contas do amigão de Lula. E Noblat conta que, "no segundo semestre do ano passado, um destacado senador da CPI dos Correios foi procurado pelo empresário mineiro Marcos Valério, um dos principais operadores do mensalão. - Estou duro de dinheiro. Diga isso a Okamotto - pediu Valério."

Finalmente, quero destacar a criatividade popular brasileira na recriação da língua portuguesa. Ao chegar ao Brasil e ao concluir o meu mestrado na Escola de Engenharia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, expressei a minha concordância com um Professor Orientador argentino que disse a uma mestranda para retirar da dissertação a palavra “graficar”, pois ele dizia com razão que essa palavra não existia em Português. Perante os meus comentários, um colega me disse: “Lúcio, você vai ver muitas vezes que aqui, no Brasil, qualquer substantivo vira verbo”. Então,
“bloga-se” o Acordo Ortográfico! Viva a flexibilidade da Língua Portuguesa, a nossa Pátria!

Um grande abraço do Kabiá-Kabiaka.

3 comentários:

Anônimo disse...

Gostei muito de seu artigo. Viva a flexibilidade da língua portuguesa, embora eu defenda o Acordo, uma tentativa de unir a forma de escrever, pelo menos em espaços como a ONU.
Divulgo seu texto, hoje, no grupo yahoo dialogos_lusofonos. Continue a escrever prosas deliciosas como esta. Margarida margaridadsc@yahoo.com

Lúcio Flávio da Silveira Matos disse...

Obrigado, Margarida!
Também, defendo o Acordo com o propósito de maior reconhecimento internacional da língua portuguesa, em organismos internacionais como a ONU. Todavia, não acredito que isso conduzirá a uma uniformidade da escrita nos países lusófonos...
Abraço,
Lúcio Kabiaka.

Soberano Kanyanga disse...

Que rica reflexão. Houve realmente muita evolução linguística nos PALOP e Brasil que o puritanismo jamais poderá conter. Imagine os termos mambo, bué, maka, kínguila, só para citar os que "me vêem à mão", já introduzidos no lexico angolano.
Costumo defender que "Cada um dos povos e países em que se fala o Português tem vizinhos diferentes, línguas nativas diferentes, com as quais mantém empréstimos". Sempre surgirão novos silogismos. Portugal interage (troca) com a Inglaterra e as línguas ibéricas.
Angola troca com as inúmeras línguas locais ( tb. chamads nacionais), com o Francês, Inglês e ainda as nativas dos países vizinhos (as fronteiras etno-linguísticas não são estanques). Brasil troca com as línguas ameríndias e com O Espanhol. De igual forma Moçambique, Cabo Verde (que até já adoptou o crioulo como segunda língua oficial, sendo inclusive a que mais se fala). Na Guiné fala-se mais o crioulo e línguas nativas do do que português. São Tomé segue-lhes as peugadas.
Acordos ortográficos, se calhar têm o seu valor, mas nunca uniformizarão a língua portuguesa.
Luciano Canhanga