Estas figueiras africanas são árvores muito frondosas, são constituídas por vários troncos regenerados e fundidos uns nos outros, muitas vezes, com as raízes estendendo-se acima do terreno, podendo ter um perímetro de mais de seis metros e atingir uma longevidade centenária. Portanto, não é de admirar que os manis[1] do Kongo e os sobas[2] do Ndongo fundassem à volta delas os seus povoados, pois as culturas africanas tradicionais atribuíam às mulembas um caráter sagrado, por incorporar os espíritos da terra. Dizia-se que era à volta destas árvores e sob a bênção da sua sombra, que as pessoas se compreendiam no mais íntimo do seu ser. Para o africano, de modo geral, a árvore estabelece uma real comunicação entre o subterrâneo, a superfície terrestre e as alturas celestiais. É como que uma garantia que não existe qualquer obstáculo intransponível entre Kalunga[3] (abismo dos mortos), o mundo dos viventes e o paraíso da libertação dos Malunga[4] (espíritos santos de brancos e negros) e Kalungangombe[5] (ente espiritual que acolhe as almas).
A palavra mulemba é usada no kimbundu, a língua gentílica praticada na minha savana. No kimbundu, o nome da figueira sagrada é associado comumente ao verbo ku lemba, que é sinônimo de escurecer ou ensombrar. Realmente, é costume dos africanos procurar a sombra de uma árvore para a introspecção individual ou para a troca amena de idéias, geralmente, histórias e adivinhas, através de um bate-papo, ou seja, daquilo que no kimbundu se chama sunguilar[6], por isso, também é chamada à figueira africana a “mulemba das discussões”.
Talvez, por inspiração sobrenatural, os primeiros mindele (plural de mundele[7] – homem branco, no kimbundu) foram atraídos pelo caráter sagrado de uma mulemba, para demarcar em volta dela a praça central da décima ilha açoriana plantada na savana. Do lado poente, foi erigida a igreja e a sul, a Casa do Divino Espírito Santo. Era a primeira manifestação desatenta de sincretismo entre a mais rígida fé católica apostólica romana e o animismo africano; era a prova material de que a mão de Nzambi[8] (Deus) está sempre ao leme dos mais bem intencionados atos humanos; era a Unicidade Divina a decretar a Unidade de todas as religiões ou rituais, como prova de que estes foram inventados pelos triviais humanos para agradar a Suprema Misericórdia, à sua restrita maneira.
Aos domingos, revelava-se mais intensamente a aura atrativa da mulemba. Os ilhéus iam chegando, atraídos por ela, confiavam-lhe as suas bicicletas ternamente encostadas uma a uma, para formar uma roda de múltiplas rodas centripetamente dispostas. Logo, se seguiam os abraços e apertos de mãos fraternalmente impostos pela saudade de uma semana de separação e isolamento no árduo trabalho de domar a savana. Sob a bênção frondosa daquela figueira sagrada animavam-se as “cavaqueiras” recheadas de termos ilhéus, que nada ficavam a dever ao sunguilamento da nova terra que os adotou como filhos.
Tudo isto eu observava detidamente, dos três aos oito anos. Como menino da savana, não entendia por que aqueles brancos gostavam de ficar conversando animadamente debaixo da mulemba. Apenas, entendia que falavam de negócios, os mais velhos, ou das meninas prendadas, que permaneciam à distância na entrada da igreja, os mais novos.
Até, o barbeiro Badaluke (Rafael, o nome de batismo) aproveitava a sombra da mulemba para tosquiar as cabeças dos ilhéus, nada afeitos ao elaborado esmero do penteado. O nome Badaluke era a corrupção, na interpretação do povo Kimbundu, do nome da terra de nascimento do barbeiro - Guadalupe, na Ilha Graciosa, Açores. Ele ia cortando os cabelos com a mesma velocidade em que costumava levar o seu veículo de transporte, que percorria a picada da fazenda ao povoado sem pegar um só pingo de lama na época das chuvas mais intensas. Só assim ele podia transformar-se no depositário mais fiel de todos os segredos de negócios e alcova que os seus clientes lhe iam confiando em voz cantada. Também, só com tal paciência de Job e tão grande moleza bovina, o Badaluke conseguia aparar o cabelo e o bigode do Aurélio Kapakeia, que recebeu este segundo nome dos indígenas por tremelicar a cabeça para um lado e outro, tal qual o pássaro homônimo. Os ouvidos e o cofre de segredos do Badaluke só eram ultrapassados pelos da mulemba, pois ela era depositária fiel duma história ancestral, muito anterior à chegada do barbeiro. Foi ali no meu silêncio perscrutador que consegui ouvir um ilhéu, que se tinha por muito sábio nos negócios, falando de que os seus sonhos de sucesso material passavam por uma cuidada criação de galinhas poedeiras, para grande contrariedade e indignação dos que divinizavam a supremacia das vacas leiteiras. Outras histórias revelavam uma coragem caricata de caçadores rapidamente adaptados ao enfrentamento das maiores feras da savana, como encarar “leões com cornos” ou, perante duas onças, “apontar o farolim de cabeça para uma e atirar de espingarda para a outra”. Tudo a mulemba ouvia e abençoava, pacientemente. Oh, paciência africana!
Certo dia, em seus cinco anos, o menino da savana e o seu mano Zeca avistaram um monandengue mumbundo (menino negro), todo vestidinho de sarja branca, tão alva de neve, e com uma fisga ao pescoço que lhes atiçou a cobiça. Eles perseguiam grandes sonhos de caçadores de siripipis, viúvas, bicos-de-lacre e outros pássaros, pousados sobre a mulemba, e, por isso, nada melhor do que um novo amigo... E, já com uma fisga bem produzida e calibrada!... Aproximaram-se e o diálogo correu solto, como convém a mentes infantis destituídas de preconceitos. O menino nativo, com cerca de 10 anos, se chamava João Eduardo e disse que estava à procura de emprego. Partimos com ele rumo a casa, já admitido ao serviço, conforme comunicamos sem tolerar contestações ao “Capitão da Malta”. Aqui, vocês ficam a saber que me refiro à minha mãe. O João Eduardo ficou com a incumbência de nos acompanhar nas traquinices de monandengue, nas idas à escola e à missa, na realização das tarefas escolares e de catecismo, sempre se comportando como um “mais-velho” bem ajuizado e interessado, para contrabalançar a irresponsabilidade dos “mininos” mindele. Não é de admirar que o João logo fez a quarta classe na escola, assumiu a vontade de se baptizar e de assumir responsabilidades de homem adulto... Onde está ele agora?... Certamente, pensando saudosamente no que nos une, não obstante o tempo, a distância e as guerras que matam o corpo e não matam a alma...
Quando regressei à savana, em 1966, depois de ser obrigado a passar cinco anos no arquipélago das nove ilhas, perdido no meio do Grande Mar Poente, foi com olhar deprimente que constatei que a mulemba central estava em adiantado e irreversível estado de seca e morte. Já ninguém se acolhia sob ela, nem para encosto das bicicletas ela servia. Ela estava devotada a um ingrato desprezo. Fazendo uso da sua linhagem sagrada, ela queria avisar profeticamente os homens da desgraça que viria em poucos anos, todavia eles não lhe prestavam qualquer atenção. Efetivamente, o prenúncio da mulemba se realizou a partir de 1975.
Só hoje, em 02 de outubro de 2003, com 50 anos, o menino da savana consegue entender o recado profético da mulemba e, por isso, escreve:
O AVISO DA MULEMBA
A mulemba era tudo
Naquele povoado de gente pioneira:
Apoio silente, confidente,
Desde papo sisudo
A conversa maneira.
Sob sua copa frondosa,
Rolavam em polvorosa
Conversas sobre kumbú[9]
E negócios de vida amorosa,
Em que o tu era eu, e o eu virava tu.
Mas, um dia, as folhas caíram,
Secaram, e os ramos partiram,
De tanto que murcharam,
De tão secos que ficaram...
Era o prenúncio da má sorte,
Da morte,
Da guerra,
Da diáspora de brancos e negros “sem-terra”.
Assim, foi o fim
Duma história de glória...
Lúcio Huambo
Florianópolis, 02/10/03
Até mais ver!
Kabiá-Kabiaka,a quem o meu pai resolveu denominar tão eruditamente, em meio às etiquetas e respeitabilidades das suas vacas leiteiras, na savana do Catofe, de Lúcio Flávio da Silveira Matos.
[1] Régulo africano do antigo Reino do Congo, ao norte de Angola.
[2] (Plural jisoba). Chefe local (termo kimbundu).
[3] Mar, abismo; termo também utilizado no sentido de morte, firmamento ou mundo dos mortos (t. kimbundu).
[4] (Santo de) – (termo kimbundu, plural de dilunga). Espíritos de indivíduos de raça branca ou negra que se revelam por simpatia e isoladamente, em lugar apropriado.
[5] Ente espiritual que acolhe as almas dos mortos no outro mundo (t. kimbundu).
[6] Passar a noite a conversar, geralmente a contar histórias ou adivinhas (t. kimbundu).
[7] (Plural mindele). Homem branco. Há várias explicações para a origem da expressão, mas predomina a inclinação para a tradição que relaciona os europeus com os espíritos dos antepassados (ndele, plural jindele), de cor branca (t. kimbundu).
[8] Deus (t. kimbundu, comum à generalidade das línguas bantu).
[9] Dinheiro (Do termo kimbundu ukumbu, vaidade).
2 comentários:
Que doces recordações! E que privilégio temos nós, leitores, por elas estarem à nossa disposição.
Fiquei imensamente emocionado quando descobri o motivo de " O AVISO DA MULEMBA ", e gostaria de manifestar meus agradecimentos pelo privilégio de acesso à tão bela escrita. Me fez lembrar de como é bom valorizar a vida.
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