O Manuel das Curvas ou “Manel das Curvas” era uma das figuras mais castiças da nossa aldeia do Katofe. Digamos que sem ele o Katofe seria uma incompletude iconográfica. Ele certamente era um dos principais responsáveis pela imagem predominante do Katofe que se gravou na mente de um camionista que parava frequentemente num dos bares para almoçar e que atirou a seguinte máxima:
- Quando se passa durante a semana no Katofe quase não se vêem açorianos, mas no domingo ou durante as Festas do Espírito Santo, principalmente, quando há uma briga com alguém de fora, eles parece que saem do meio do capim como se fossem chineses.
Realmente, o Manel das Curvas era um daqueles que, à semelhança do Sete Orelhas, “pagava um boi para não entrar na briga e uma boiada para não sair”, sobretudo quando vislumbrava alguma oportunidade de atuar como justiceiro, todavia sem chegar ao extremo de arrancar as orelhas dos adversários, pois ele achava que pegar qualquer instrumento além dos próprios punhos para dirimir as desavenças era lutar “à falsa fé”, para usar a sua própria expressão. Outra atitude que ele designava por falsa fé era um dos contendores iniciar a luta de repente sem uma troca de palavras preparatórias ou algum ritual prévio que usava desde as lutas de escola, que era, por exemplo, passar a ponta do indicador na ponta do nariz do outro.
O Manel das Curvas recebera o nome de batismo de Manuel Vitorino Nunes, na sua freguesia do Topo, na Ilha de S. Jorge, Açores. O apelido vinha-lhe dos primeiros tempos de Angola, dado por açorianos e kimbundus, que se divertiam ao vê-lo dar as primeiras andanças de bicicleta em curvas sucessivas, para um lado e para outro, para assegurar o equilíbrio em avanço lento. Quando chovia, as poças que predominavam nas principais ruelas do Katofe, tornavam a observação do Manel da Curvas no domínio da bicicleta ainda mais divertida. Com o tempo ele se tornou um exímio ciclista como todos os açorianos que na sua chegada ao Katofe adotaram a “chica”, como se dizia em Angola, por parceira preferida de viagem.
O Manel das Curvas tinha um nariz adunco, usava o cabelo apartado com um risco à direita e penteava para cima e para a esquerda as melenas com brilhantina ou bem molhadas e untadas levemente com sabão, para não caírem. Quando a franja secava, então, ficava solta ligeiramente para a esquerda e a encobrir parte da testa. Na frente das orelhas, o cabelo bem aparado crescia para baixo em patilhas ou suíças que certamente acertava frequentemente com o aparelho de barbear. O rosto era assimétrico e contribuía para destacar essa característica o afundamento de uma das maçãs do rosto, relativamente à outra, com certeza, como recordação de uma das suas lutas menos gloriosas. A completar a descrição dos traços mais marcantes que me pairam na memória, resta a boca ligeiramente torta, com um canto mais rebaixado, quiçá pelo hábito de manter ali um cigarro quase sempre aceso. Das suas marcas que mais me comoviam era ouvi-lo falar da sua filha mestiça que procurava proteger com muito carinho e que chegou a levar para Portugal, na sua saída de Angola, em 1975.
O Manuel gostava de recordar algumas das suas lutas e render aos adversários as homenagens que ele achava mais merecidas. Uma das descrições mais divertidas de ouvir era a que ele fazia de uma luta que teve com o Mendonça; estavam a construir uma ponte perto da chitaca do tio, António Vitorino Nunes, quando se travaram de razões, mas considerou a luta empatada porque conseguiu derrubar o adversário no chão, mas ao tentar esmurrar-lhe a cabeça, “o Mendonça driblava os murros como se fosse um melro ou um tintilhão”, os pássaros que ele mais recordava dos tempos de infância, que tremulavam a cabeça para um lado e outro, alternadamente. Disse que no mesmo local lutou com o Velho Ernesto Faustino, mas a batalha teve que ser suspensa porque conseguiu colocar o adversário dentro do riacho e este teve um princípio de “congestão”. Aliás, o Manel das Curvas gostava de afirmar à boca cheia, para quem quisesse ouvir, que não tinha medo de nenhum Pascoal (Faustino), apesar dos Pascoais serem afamados em luta desde os tempos de juventude na Ilha de S. Jorge, porque sempre que lutou com um Pascoal este sempre batia primeiro “à falsa fé”. Esta declaração valeu-lhe depois uma dura punição, como se verá mais adiante.
A luta que assisti por inteiro do Manel das Curvas foi com o Rabaça. À época o Rabaça, um rapaz beirão, chegado há pouco tempo de Portugal, trabalhava na loja nos baixos da casa do Velho Kimbaça, o Sr. Emílio Dias. A loja do meu pai ficava bem ao lado. Acontece que o Manel das Curvas estava na nossa loja e viu que o ajudante do Rabaça conseguiu persuadir uma cliente que já estava a trocar o seu milho na nossa loja a se mudar para a loja do lado. Então, o Manel das Curvas não achou essa atitude do rapaz muito elegante e avisou o Rabaça que iria ajustar as contas com o rapaz no fim do serviço, pois já era fim de tarde. Ocorreu que o ajudante do Rabaça conseguiu escapar para a sanzala no fim do serviço ou antes, sem ser visto pelo Manel das Curvas. No fim do expediente, estava montado o cenário completo para o Manel das Curvas ajustar as contas com o próprio Rabaça que foi acusado de encobrir a fuga do seu ajudante.
O Manel esperou que o Rabaça fechasse a loja e chamou-o para conversar na eira, na frente da casa do Sr. Emílio. No meio da discussão, o Manel começou a passar a ponta do indicador na ponta do nariz do Rabaça e este iniciou a luta atirando-se ao desafiante como se fosse um galo de briga. Após a troca de uns murros e rasteiras, com o Rabaça dominado debaixo do Manel, entrou em ação a turma do deixa disso e o Rabaça acabou com uns leves arranhões e um pequeno hematoma no rosto. Então, com os dois em pé, um de frente para o outro, o Manel disparou a sua sentença final:
- Isto é só para tu saberes que um estransmontano nunca brinca com um açoriano! Ouviste Lambáça?
Quando recordo essa luta do Manel das Curvas, nunca deixo de rir, principalmente, por causa daquela declaração final que ficou gravada definitivamente na minha memória. Uns meses depois na hora da missa, no bar do Branco, onde o Rabaça foi trabalhar, o Manel fez com ele as pazes.
Em certo baile na Casa do Espírito Santo, o Manel das Curvas resolveu aparar umas arestas com um pessoal de fora da terra... A dado momento, eu vi o Velho João Faustino vir em disparada, o Manel das Curvas tentou fugir por uma das saídas do recinto que dava para um corredor, mas encontrou a porta fechada; o Velho João Faustino disparou no Manel uns canhotos certeiros, até que este se desvencilhou debaixo e conseguiu escapar para a rua, algo contundido. No domingo seguinte, vimos o Manel com o braço direito pendurado com uma faixa branca e alguém lhe disse:
- Ó Manel, hoje, vieste á missa de gravata?!
- Nunca nenhum Pascoal me bateu que não fosse à falsa fé – respondeu o Manel das Curvas, que continuou fiel à sua tese sobre a bravura dos Pascoais.
Na continuidade da conversa, o Manuel das Curvas resolveu filosofar como um velho que conhecera no Topo, segundo a sua habitual tirada:
- O que interessa é acordar com os pés quentes...
A verdade é que numa das minhas visitas aos Açores, bem antes de vir para o Brasil, soube que o Manuel das Curvas abatido pela tristeza do exílio africano na sua freguesia natal, logo após a descolonização, resolveu desistir de acordar com os pés quentes e enforcou-se. Triste sina de um amante da luta que desistiu de lutar pela vida...
A todos os que me lêem,um grande abraço do Kabiá-Kabiaka.