Lembro que a tentativa de celebração do Acordo Ortográfico, entre Portugal, Brasil e PALOP, já é anterior a fevereiro de 1987, quando eu demandei definitivamente plagas tupiniquins. Nessa época, o dito acordo foi muito atacado pelos puristas lusos, a tal ponto que a sugestão de abolir o acento na antepenúltima sílaba das palavras proparoxítonas recebeu um texto num jornal, mais ou menos assim, quanto a um diálogo em que um amigo perguntava a outro se tinha “cágado” em casa:
- Você tem cagado no jardim?
- Não, eu tenho cagado em casa.
- Onde você tem cagado?
- Eu tenho cagado na banheira.
Claro, imagino que esses equívocos foram saneados, ao fim de mais de vinte anos de estudo e debate, do acordo que dizem ser agora para valer. Porém, o Acordo Ortográfico continua ter os seus detratores em todos os países lusófonos com a principal argumentação de que o português que se fala e vive em Portugal, Brasil e Angola, por exemplo, não é o mesmo.
Efetivamente, assim é, sobretudo, para expressões e interpretações de uso popular. Já nos primeiros anos de escola aprendi que havia palavras de português que eram de origem popular e outras de origem erudita. Por que é que a origem popular de certas palavras da nossa língua só pode ser válida se ocorrer no “jardim à beira-mar plantado”, onde só habitam 10 (3,33%) dos mais de 300 milhões de lusófonos? Então, por que é que os angolanos já adotam a palavra “muambeiro” como sinônimo de “candongueiro”, sendo esta a única palavra que se usava em 1975, quando saí da minha terra natal? Certamente, por influência das novelas brasileiras, também, muito apreciadas em Portugal... Por que é que os portugueses adotam atualmente o termo “carrinha”? Certamente, por pura influência dos exilados de Angola que foram acolhidos em Portugal... Portanto, a língua é uma entidade viva e se molda mais pelo amplo convívio dos povos e não por acordos políticos e técnicos. Uma coisa é certa: muitas regras do acordo ortográfico levarão muitos anos até serem absorvidas pelos diversos povos lusófonos e algumas nunca vingarão. Quem viver, verá!
Malgrado o esforço dos especialistas dum lado e outro do Atlântico, certas palavras assumirão sempre significados bastante diferenciados em várias regiões e povos, por exemplo, analise-se alguns sentidos para a palavra “liso”:
- Franco, lhano, sincero, leal (sentido figurado).
- Pessoa esperta, difícil de ser apanhada, escorregadia (Florianópolis, Santa Catarina, Brasil).
- Sem dinheiro (uso popular em Portugal e no Nordeste do Brasil).
Cabe aqui recordar o trecho de uma poesia de gaúcho (o povo que se considera “o mais macho do Brasil” ou “machucado”, como dizem os “Catarinas”), numa veia bem “gaudéria” (malandra), que elucida o uso do termo “liso” no Sul do Brasil:
C... de lombo liso
Recorde-se que o jundiá é um tipo de bagre, praticamente, sem escamas; quanto ao termo C..., você interpreta como quiser – dê asas à sua imaginação – porque é escrito e usado com o mesmo sentido em todos os países lusófonos.
Como o Acordo Ortográfico é mais obra de políticos do que dos povos lusíadas, então, não poderíamos deixar de fazer aqui uma referência à “lisura” de quem nos governa, quando entra num estado de eminente “dureza”, conforme um blog brasileiro:
O blog do Noblat e o ex-blog de César Maia esquentam a chapa de Okamotto. O prefeito do Rio divulga os números das contas do amigão de Lula. E Noblat conta que, "no segundo semestre do ano passado, um destacado senador da CPI dos Correios foi procurado pelo empresário mineiro Marcos Valério, um dos principais operadores do mensalão. - Estou duro de dinheiro. Diga isso a Okamotto - pediu Valério."
Finalmente, quero destacar a criatividade popular brasileira na recriação da língua portuguesa. Ao chegar ao Brasil e ao concluir o meu mestrado na Escola de Engenharia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, expressei a minha concordância com um Professor Orientador argentino que disse a uma mestranda para retirar da dissertação a palavra “graficar”, pois ele dizia com razão que essa palavra não existia em Português. Perante os meus comentários, um colega me disse: “Lúcio, você vai ver muitas vezes que aqui, no Brasil, qualquer substantivo vira verbo”. Então, “bloga-se” o Acordo Ortográfico! Viva a flexibilidade da Língua Portuguesa, a nossa Pátria!
Um grande abraço do Kabiá-Kabiaka.