quarta-feira, junho 15, 2005

POR QUE É QUE A COBRA MUDA DE PELE?

Ser cobra é bom ou é mau? É verdade, existem mesmo muitas controvérsias acerca da melhor resposta à questão proposta. Sobre este assunto tão difícil, seria caso mesmo de consultar o ex-futebolista Dadá Maravilha e ele certamente chutaria o seu bordão mais característico: “se você tem a problemática, então, eu tenho a solucionática”... Mas, já que o Dadá não me revelou a sua "solucionática", vamos aqui fazer algumas considerações acerca dum tema tão instigante.
Quanto a mim, eu nunca tive muito medo desses bichos considerados peçonhentos pela esmagadora maioria das pessoas. Antes, sempre tive um fascínio mórbido por cobras. Lembro-me perfeitamente duma experiência bem marcante, nos meus tenros, mas bem ousados, cinco anos de idade. A nossa família, constituída por pai, mãe, cinco filhos e dois avós maternos, vivia numa casa de paredes de adobe rebocadas, piso cimentado e telha cerâmica tipo Marselha, na povoação do Kuanza Sul que os colonizadores açorianos convencionaram chamar de S. Jorge do Catofe, a cerca de 350km de Luanda e 250km do Huambo, em Angola. Mais tarde, quando eu já tinha quinze anos, mudamos para uma casa, que se dizia mais moderna; esta tinha paredes de tijolo cerâmico e telhas de fibrocimento. Era quente pra caramba e me fazia sentir saudades daquela primeira casa bem adaptada ao clima tropical. Realmente, a
“casa velha” – como lhe chamávamos – foi convertida em depósito de rações para gado e outras quinquilharias, todavia nunca ousamos chamar-lhe armazém ou coisa no gênero, pois sempre a sentíamos como a nossa casa, como se algum de nós projetasse um dia voltar a morar nela. Ora bem, a “casa velha” tinha uma arquitetura colonial simplificada, com uma varanda a todo o comprimento, na frente, o corpo central com a sala e três quartos, sem qualquer corredor entre os compartimentos, ao melhor estilo comboio, no meio, e uma varanda atrás, entre a casa de banho e a cozinha. Um dia, como sempre fazíamos, estávamos a tomar o “matabicho” (café da manhã ou pequeno almoço) nesta varanda da retaguarda, quando três ou quatro empregados da casa entraram em grande polvorosa porque tinha aparecido uma cobra no limoeiro que havia ali perto, a uns vinte metros de casa. E vai de jogar pedra e pau e tudo quanto encontraram para matar o indesejado e temido bichinho. Logo, entendi que os africanos geralmente tinham um grande pavor de cobras, o que para mim era absolutamente incompreensível. O meu espanto foi maior quando verifiquei que, mesmo depois de morta, eles não ousavam pegar na cobra com a mão e procuraram jogá-la com o auxílio de paus no meio do mato, que se mostrava soberano, ali bem perto, já a cinqüenta metros, atrás de casa. Eu fiquei de olho bem aberto, enquanto belas idéias e planos perpassavam vertiginosamente a minha mente. Assim, logo de manhã, após morto o bicho do estômago, resolvi partir para a ação e cuidar do outro bicho já mais que morto e jogado no meio do mato.
Foi fácil achar aquela cobra encantadora de cor amarelo-esverdeada. Peguei-a heroicamente com as minhas tenras manápulas, pelos fagotes, logo, ali atrás da cabeça, e lá vou com ela, qual Rei N’Gola Kilwange destemidamente de espada em riste, a dar execução ao meu plano já solidamente elaborado, enquanto tinha saboreado o meu desjejum matinal. Claro, a vítima tinha que ser o Aníbal! No dia anterior, ele tinha-me repreendido por ter derrubado a pontapé as
quindas (balaios africanos de forma cônica) das clientes da loja e, portanto, agora, estava em perfeitas condições de demonstrar para ele que “a vingança é um prato que se come frio” e bem frio, tão frio como cobra morta. Vale aqui dizer que o meu pai Vicente Matos, batizado pelos kibalas como Kilamba, tinha negócios que incluíam criação de gado leiteiro e comércio, em sociedade com o mais-velho Kimbaça (gordo, em Kimbundu; nome dado ao Sr. Emílio Dias, um dos três pioneiros do Catofe, juntamente com o Sr. João de Oliveira e o Sr. André de Oliveira) e o mais-velho João do Catofe (João de Oliveira). O Aníbal era o funcionário da loja de comércio e também era afilhado de batismo do mais-velho João do Catofe. Era um rapaz mestiço de pouco mais de vinte anos, com habilidades artísticas inexploradas, pois um dia o meu avô mostrou-lhe uma figura desenhada de Luís de Camões e ele moldou um busto do poeta que encheu os olhos de todos os que tiveram a oportunidade de admirar a obra-prima. Pois bem, foi exatamente este Aníbal habilidoso que eu resolvi homenagear com a cobra morta que busquei no mato. Invadi a casa dele sem qualquer mandato judicial, no melhor estilo revolucionário que vi ser imitado mais tarde por outros, em 1975, sem poder cobrar direitos de autor; coloquei muito carinhosamente a cobra, bem aconchegadinha, no meio dos lençóis da cama do meu desafeto Aníbal. Voltei a casa, verifiquei que ninguém tinha dado pela minha façanha e voltei à rua para brincar despreocupadamente, tendo o cuidado de passar na frente da loja e olhar lá para dentro diretamente na cara da minha nova vítima, deliciando-me já com o aspecto que ela tomaria mais tarde, quando ele chegasse a casa e levantasse os lençóis para o tão ambicionado descanso. E ocorreu o que realmente imaginei! Logo após o pôr-do-sol, como habitualmente, cerca das 18h30, estava toda a família a fazer a última refeição, quando ouvimos uma grande gritaria e aparece o Aníbal esbaforido: “Patrão, patrão, vem depressa, vem matar uma cobra que está na minha cama...”. Lá foi o Kilamba Vicente, com a coragem que Deus lhe deu e o seu diminuto estado-maior, tentar matar a cobra que estava na cama do Aníbal. Na volta, o meu pai vinha sorrindo, logo olhou diretamente nos meus olhos e exclamou: “Vê-se logo que foste tu!” Escapei duma surra, pelo caricato da situação... Moral da história: já na minha tenra infância, cobra era uma coisa boa para mim, todavia era muito má na visão dos meus amigos kimbundus.
Mais tarde, já na entrada da adolescência, com treze anos, eu fiz questão de demonstrar as minhas habilidades de matador e manipulador de cobras. Matei uma cobra e resolvi correr com ela atrás dos funcionários da casa. Que cena misturada de terror e hilaridade! Todavia, quando entrei na sapataria, bem embaixo da casa do mais-velho
Kimbaça, na frente da minha, levei a pior, pois o sapateiro resolveu fugir lá de dentro à medida que atirava sapatos e martelos que por pouco não acertaram a minha cabeça... Nunca entendi essa síndrome do pânico que os kibalas da minha savana tinham por cobras mortas, por isso, tão inofensivas...
Quando cheguei ao Brasil, em 1987, ouvi os meus colegas de mestrado referir-se a determinado professor:
“o cara é cobra no assunto!” Entendi que eles queriam dizer que o professor era extremamente competente na sua área de ensino e pesquisa. Portanto, para os brasileiros, em alguns aspectos, ser cobra era uma coisa muito boa. Talvez, por isso, eles se refiram a quem apresenta notória masculinidade, na relação com o sexo feminino, ou coragem, em situações críticas, com a expressão “mata a cobra e mostra o pau”.
Agora, me lembro que na minha juventude dizíamos que o desejo de todo o homem era
“ter uma mulher que fosse uma cobra na cama”. Nesta situação, os brazukas têm razão quando dizem que o homem é o que “mata a cobra e mostra o pau”. Entendeu tudo, caro leitor, que nesta situação a cobra só pode ser coisa boa... Eu já entendi isto com treze anos, quando a lavadeira Maria Kambuta (Maria Baixinha) resolveu abusar de mim, num dos intervalos dos serviços que ela ia lá a casa prestar para a minha mãe. A minha mãe, a quem nos meus bem divertidos quatro anos homenageei com o título "Capitão da Malta", vai ficar estarrecida e petrificada quando ler esta minha inconfidência escrita e pública... Ela bem conhece o filho que (não) criou... Quando estávamos a fazer alguma traquinice, ao ver a minha mãe, eu dizia para o meu irmão: “Ó Zeca, vamos fugir! Chegou o Capitão da Malta!” Bazávamos em duque na esgalha (expressão angolana que quer dizer ‘os dois fugíamos em correria’). Fiquei muito traumatizado com a experiência que tive com essa cobra viva – a Maria Kambuta – porém resolvi perdoar-lhe imediatamente e absorvi introspectivamente que só poderia resultar coisa boa se eu aprofundasse as minhas habilidades em lidar com este, para mim, inusitado tipo de cobras. Convém confessar que continuo tentando e aprendendo!... Portanto, não sou ainda um expert em cobras. Recuso-me a prestar consultoria neste tão nobre ramo do conhecimento.
Neste campo, eu vou agora contar uma história real. O velho Machado com cerca de sessenta anos tinha chegado ao Catofe da sua
“santa terrinha”, ou seja, da ilha de S. Jorge, nos Açores. O José Teixeira, como bom anfitrião e com sólidos conhecimentos zoológicos da região, resolveu servir de cicerone e levar o dito velho na sua motorizada para dar-lhe a provar o abençoado veneno das cobras de Angola. Dizia-se que quem provava desse mágico veneno nunca mais esquecia e jurava repetir a experiência, vezes sem conta. Então, lá foram os dois na burra de 50cc a caminho da Quibala, que ficava a 15 km para norte. No meio do caminho, surgiu uma ótima oportunidade, ali bem no meio do mato, ao lado da estrada. No fim da experiência, eis que surge o velho Machado visivelmente inebriado e trava-se entre os dois caçadores de cobras o seguinte diálogo:
-
Então, como foi? Perguntou o José Teixeira.
-
Oh paz, paguei vinte esquiudos mas gostei! Devolveu o velho Machado. E ela guinchava debaixo de mim... Oh paz, ela ia me matando... O que vale é que os gravetos eram miúdos, mas se fossem grados, oh paz, ela tinha me matado! Sim senhor, paguei vinte esquiudos, mas gostei... Oh, ti Jezé, o home não sabe o home que tá qui! Oh, ti Jezé, entã, o home não sabe o home que tá qui!
Pelo diálogo relatado em bom ‘açorianês inhameiro’, vê-se que o velho Machado, a partir daquela data, ressuscitou em África para uma vida nova e passou a ser, se já não era ele, na verdadeira acepção da expressão brazuka, um homem que “mata a cobra e mostra o pau”. Portanto, neste capítulo, de cobra só vem coisa boa. É o relato do que podia fazer a um bom velhinho o verdadeiro “pau de Cabinda”, o afrodisíaco natural angolano que nunca foi suplantado pelo neófito e artificial Viagra... Refira-se que o primeiro não tem efeitos colaterais, ao passo que a versão laboratorial pode causar até cegueira, segundo ouvi noticiar ultimamente na televisão. A rematar, podemos afirmar com absoluta segurança que, se o velho Machado tivesse vivido mais uns anos e vindo parar às terras brasileiras, até, poderia ter dado a sua contribuição a Roberto Carvalho e Arnaldo Jabor para a canção “amor e sexo” de Rita Lee:

Amor é um livro, sexo é esporte
Sexo é escolha, amor é sorte
Amor é pensamento, teorema
Amor é novela, sexo é cinema
Sexo é imaginação, fantasia
Amor é prosa, sexo é poesia.


Talvez, por causa dos argumentos apresentados anteriormente a favor de certo tipo de cobras, é que os iorubas da Nigéria costumam esculpir uma grande cobra sagrada enrolada em cima de tampas de tigelas de madeira, pois esta cobra é um símbolo da vida e da eternidade. Portanto, para os iorubas, contrariamente aos meus conterrâneos kibalas, a cobra pode ser boa. Para os iorubas, a cobra sagrada tem um papel de protetora e não de rival do homem; é guardiã das regiões sagradas ou do Reino dos Mortos, um animal com alma, um símbolo de fecundidade sexual – masculino e feminino, simultaneamente, em razão da sua forma fálica e do seu ventre – e símbolo da renovação permanente da vida, porque tem a capacidade de trocar de pele.
Mas, ainda não respondemos à pergunta do título:
Por que é que a cobra muda de pele?
Não tenho base científica para responder à pergunta, por isso, acredito na seguinte lenda africana:

No princípio a morte não existia. A Morte vivia com Deus, e Deus não queria que a morte entrasse no mundo. Mas a Morte tanto pediu, que Deus acabou concordando em deixá-la partir. Ao mesmo tempo fez Deus uma promessa ao Homem: apesar da morte ter recebido permissão para entrar no mundo, o Homem não morreria. Além disso, Deus prometeu enviar ao Homem peles novas, que ele e sua família poderiam vestir quando seus corpos envelhecessem.
Deus pôs as peles novas num cesto e pediu ao cão para levá-las ao Homem e sua família. No caminho, o cão começou a sentir fome. Felizmente, encontrou outros animais que estavam a celebrar uma festa. Muito satisfeito com a sua boa sorte, o cão pôde assim matar a fome. Depois de haver comido fartamente, dirigiu-se a uma sombra e deitou-se bem regalado para descansar. Então, a cobra esperta aproximou-se dele e perguntou o que é que havia no cesto. O cão disse-lhe o que havia no cesto e porque estava levando as peles para o Homem. Minutos depois o cão caiu no sono. Então, a cobra, que tinha ficado por perto à espreita, apanhou o cesto de peles novas e fugiu silenciosamente para o mato.
Ao acordar, vendo que a cobra tinha roubado o cesto de peles, o cão correu até ao Homem e contou-lhe o que acontecera. O Homem dirigiu-se a Deus para lamentar o ocorrido e solicitar que Ele obrigasse a cobra a devolver as peles. Porém, Deus respondeu ao Homem que não retiraria as peles da cobra e que o ser humano passaria a morrer quando ficasse velho. Desde esse dia o Homem passou a ter um ódio mortal à cobra, e sempre que a vê procura matá-la. A cobra, por seu lado, sempre evitou o homem e sempre viveu sozinha. E, como ainda possui o cesto de peles dado por Deus, pode trocar a pele velha por outra nova sempre que necessário.

O imaginário desta lenda africana está muito próximo da cultura judaica dos templos bíblicos, que apresenta a cobra como um animal impuro e como a imagem original do pecado. Todavia, não se pode olvidar o episódio ocorrido quando os israelitas foram castigados pela sua desobediência no deserto com uma praga de cobras venenosas e aladas; então, Moisés esculpiu a “serpente de bronze” para ser contemplada pelos desobedientes, que viam assim saradas as mordidas mortais e restituída a sua vida. Esta “serpente de bronze” dos tempos mosaicos, devido ao seu poder benéfico, foi até adotada pelos cristãos dos tempos apostólicos como o primeiro símbolo de Cristo.
Agora, aqui, para nós que ninguém nos ouve, esta capacidade que a cobra tem de mudar sucessivamente de pele faz dela um ótimo símbolo para a esmagadora maioria dos políticos do nosso atual espaço lusófono, seja no Brasil, em Portugal ou em Angola, onde muitos têm uma facilidade incrível de mudar o discurso, porém permanecendo com as mesmas ações em detrimento do povo mais sofredor. A analogia é mais apropriada para os órfãos de Marx e Lênin que têm agora um discurso travestido de social-democracia, mas continuam a praticar as velhas e sórdidas ações stalinistas contra os seus críticos e adversários, desaparecendo estes muitas vezes sem deixar um efêmero rastro de cobra...
Até mais ver!
Kabiá-Kabiaka,a quem o meu pai resolveu denominar tão eruditamente, em meio às etiquetas e respeitabilidades das suas vacas leiteiras, na savana do Catofe, de Lúcio Flávio da Silveira Matos.

Um comentário:

Anônimo disse...

Parabéns pela narrativa.
Saudações,
Angela Moura
www.angelamoura.com