domingo, março 10, 2013

UMA IGREJA, UM MARCO DE EVOLUÇÃO


Em setembro do ano passado recebi do meu amigo conterrâneo Luciano Canhanga – ver blog www.mesumajikuka.blogspot.com.br – algumas questões sobre o maior expoente da colonização açoriana em Angola, sendo esta a primeira pergunta: “Lúcio, havia uma cidade, pequena, mas com este estatuto ganho em 1974, que é a Kibala. A dez quilómetros erguia-se a vila de Katofe com igreja sumptuosa e casas majestosas (naquele tempo) que comentário?”.

Efetivamente, mesmo atendendo aos padrões da época, não considero que o Catofe tivesse, em 1974, uma igreja sumptuosa e casas de moradia majestosas. A verdade é que eram edificações de alvenaria de boa qualidade, visto que o abandono e a depredação de mais de trinta anos não comprometeram a sua solidez estrutural, a ponto de ser ainda hoje possível recuperá-las com simples obras envolvendo o acabamento, as instalações hidro-sanitárias e elétricas e outros complementos. A igreja para ser sumptuosa precisaria de relíquias em ouro, acabamento interior sofisticado, decoração e mobiliário abastados, o que efetivamente não possuía como em outras igrejas da mesma época. Quanto às casas dos moradores catofianos, elas podiam ser consideradas de médias no conforto, tamanho e acabamento construtivo, se comparadas com mansões que já proliferavam nas cidades mais vizinhas; claro, elas eram motivo de orgulho para quem teve que morar em casas de pau-a-pique e adobe cobertas de colmo quando chegou a uma savana que se mostrou bastante inóspita no início do desbravamento.

É de destacar que a igreja deixada em 1975 pode ser considerada um marco da evolução da colonização açoriana nas baixas do Catofe, pois era a terceira construção e os colonos açorianos sempre consideraram prioritário o melhoramento contínuo desse símbolo físico da sua religiosidade, quiçá, como retribuição das graças divinas recebidas que se traduziam num progresso material, a princípio incipiente, que se mostrava crescente e imparável à época da diáspora de 1975.

Como a minha memória não abrange os primórdios da colonização, recorro aos subsídios do meu Kilamba Vicente Teixeira de Matos que aborda assim as metamorfoses experimentadas pela igreja de S. Jorge do Catofe:

A assistência religiosa foi desde o início prestada pela Missão Católica de Kibala, numa casa particular. Em 1 de Setembro de 1952, Sua Excelência Reverendíssima o Arcebispo de Luanda, benzeu a primeira pedra da pequena capela, que viria a ser dedicada ao padroeiro S. Jorge pelo mesmo Arcebispo, em 1954. Esta capela viria a ser reconstruída mais duas vezes, transformando-se numa bela igreja, que não envergonhou os seus construtores. Deve assinalar-se que alguns povoadores contribuíram para estas obras com quantias superiores às que dispende­ram nas suas próprias casas. Não negando a sua generosidade e a sua fé! (MATOS, V.T., S. Jorge do Katofe ou a Décima Ilha dos Açores. Revista ATLÂNTIDA, VoI. XLVI, 2001, também, publicado em www.kabiaka.blogspot.com.br).

Tenho uma vaga memória desta primeira igreja, que era efetivamente uma capela ou ermida. Ela foi inaugurada quando eu tinha apenas 1 ano de idade e, em 1960-61, portanto cerca de 6 anos depois, já tinha sido acrescentada e melhorada; recebeu uma torre de sineira e uma nova fachada, assumindo um aspecto que poderia ser apropriadamente designado de igreja. Estas melhorias foram possíveis com o crescimento das Festas do Divino Espírito Santo, com duração de uma semana completa, incluindo vários rituais e atos significativos, tais como missa, procissão, distribuição de carne e pão a famílias nativas no dia de Pentecostes, refeições para todos os participantes na festa, leilões de gado, apresentações de filarmónica, tourada, competição de tiro ao alvo e bailes.
A primeira igreja do Catofe.

A segunda igreja do Catofe.

 Altar da primeira e segunda igrejas.

A construção da torre ativou a imaginação e a criatividade artística da petizada da qual eu fazia parte. Lembro-me que, logo após a inauguração desta segunda igreja, lá por 1960, nos meus vigorosos 7 anos, fui com o meu irmão Zeca e o meu amigo João Duarte Betencourt testar a aceleração da gravidade com uma ninhada de gatos que se abrigava debaixo das escadas da sineira. Pegávamos os gatos com as patas para cima e os jogávamos lá de cima da torre para ficarmos surpreendidos com a volta que eles davam no ar para pousar bem direitinhos no chão, com as patas para baixo, e sair em corrida desesperada, para bem longe e sem olhar para trás. Antes que alguém nos julgue e condene como maldosos, pois um dos três autores da proeza até acabou por se tornar veterinário, deixo aqui a reflexão dum pensamento de Friedrich Wilhelm Nietzsche:

A criança é a inocência, e o esquecimento, um novo começar, um brinquedo, uma roda que gira sobre si, um movimento, uma santa afirmação. (NIETZSCHE, Assim falou Zarathustra. Martin Claret: São Paulo, 2004, p.35).

Realmente, naquele tempo, como muito bem teorizou Nietzsche, éramos crianças muito saudáveis que levávamos a vida como uma obra de arte, sem regras, por isso, vivíamos sem complexos num mundo estético e não moral, para grande assombro e pavor dos velhos e falsos moralistas. Mas, havia uns “Mais Velhos” que se deliciavam e reviam nas nossas traquinices. No seu íntimo eles sentiam que o mundo é como a vida de uma criança saudável, sem qualquer castração adulta, uma eterna ausência de ordem, somente luta e contradição, fluxo e refluxo, ir e vir, o caos da eterna mudança e da criatividade, continuamente criando e recriando, construindo e destruindo, sem qualquer sentimento de culpa. Construir e destruir faz parte da natureza infantil, pois nessa fase da vida se está além do bem e do mal. O homem deve sempre ter a liberdade de criar e recriar novos valores, fazendo e desfazendo avaliações, como a criança quando brinca, talvez, por isso, mesmo, a igreja do Catofe teve três versões, a última delas após completa demolição das duas primeiras.
A segunda igreja do Catofe em dia de procissão do Divino Espírito Santo.

De 1961 a 1966, fui submetido a um exílio forçado nas Ilhas do Mar Poente – os Açores – e, no regresso à boa terra que me viu nascer, verifiquei que a igreja onde realizei as minhas primeiras constatações da primeira Lei de Newton, tinha sido completamente arrasada por mãos que estavam desejosas de construir algo maior. Como disse Goethe, “ninguém é menor do que o seu próprio sonho”, assim, os catofianos resolveram em meados da década de 1960 construir uma nova igreja, que não chegava perto da sumptuosidade das catedrais medievais, mas dispunha de espaço para acomodar não só as cerca de setenta famílias locais na missa semanal, mas também os forasteiros mais devotos no Dia de Pentecostes. Esta igreja, concluída em 1970, era desprovida de luxo, contudo tinha um bom traçado arquitetônico que proporcionava muita funcionalidade nas atividades de culto que nela se realizavam.
A terceira igreja, logo após a inauguração em 1970.

Quero aqui ressaltar repetidamente as palavras do meu Kilamba Vicente: “Deve assinalar-se que alguns povoadores contribuíram para estas obras com quantias superiores às que dispende­ram nas suas próprias casas. Não negando a sua generosidade e a sua fé!”. Dizia o imperador francês Napoleão Bonaparte que “uma sociedade sem religião é como um navio sem bússola”. Certamente, foi a religiosidade do açoriano do Catofe ou Catofiano que lhe garantiu a persistência e a visão suficiente para desbravar e permanecer nessa savana angolana para ver germinar e frutificar os resultados dos seus abnegados esforços que permitiram erigir uma igreja, que ainda hoje muitos admiram e, posteriormente, casas de alvenaria cuja durabilidade foi devidamente testada com as agressões trazidas por uma guerra civil insana de um quarto de século.

Em 1975, foi implantado um governo de inspiração comunista que, segundo algumas informações, ousou transformar a igreja em escola comunitária e a escola em quartel militar. Certamente, por vergonha da decisão tomada, resolveram quebrar os braços da cruz, os quais não foram repostos na reconstrução.

Uma visão lateral da igreja destruída, no início da década de 1990.

Um aspecto da igreja reconstruída.

 Visão da fachada da igreja reconstruída.

Esta ideia luminosa de transformar uma igreja em escola e a escola em quartel militar faz-me lembrar a comparação feita por Fernando Pessoa entre catolicismo e comunismo:

Ao contrário do catolicismo, o comunismo não tem uma doutrina. Enganam-se os que supõem que ele a tem. O catolicismo é um sistema dogmático perfeitamente definido e compreensível, quer teologicamente, quer sociologicamente. O comunismo não é um sistema: é um dogmatismo sem sistema – o dogmatismo informe da brutalidade da dissolução. Se o que há de lixo moral e mental em todos os cérebros pudesse ser varrido e reunido, e com ele se formar uma figura gigantesca, tal seria a figura do comunismo, inimigo supremo da liberdade e da humanidade, como é tudo quanto dorme nos baixos instintos que se escondem em cada um de nós. O comunismo não é uma doutrina porque é uma antidoutrina, ou uma contradoutrina. Tudo quanto o homem tem conquistado, até hoje, de espiritualidade moral e mental – isto é de civilização e cultura –, tudo isso ele inverte para formar a doutrina que não tem.

Realmente, o comunismo não fincou raízes em Angola, por isso, a igreja transformada em escola por algum tempo, depois destruída e abandonada, voltou a ser igreja, após uma reconstrução que lhe restituiu a dignidade, mas não a majestade de outrora, basta examinar detalhadamente a cruz que não foi recuperada e as imperfeições que se manifestam no reboco, bem visíveis até nas fotografias. Uma comprovação de que a técnica de bem edificar de quarenta anos atrás era totalmente dominada com a competente orientação dos mestres-de-obras açorianos, entre os quais se destacavam os Srs. Estevam Jesus de Matos e Manuel Bettencourt Oliveira, que aqui merecem a nossa homenagem.

Hoje, a igreja não acolhe os colonos que a erigiram, todavia cumpre a missão que animou os seus criadores a fazê-la passar por diversas metamorfoses para engrandecê-la e torná-la como um marco perene de difusão de religiosidade e espiritualização no meio da savana angolana, às margens do rio Katofe.

Saída da missa hoje, com a Casa do Espírito Santo à direita, que aguarda a reconstrução.

Um grande abraço do Kabiá-Kabiaka.

quarta-feira, janeiro 30, 2013

O MAIOR PODER


Sempre me encantei com as fábulas africanas, que ouvia atentamente na minha infância de Angola, pois continham ensinamentos muito positivos para a vida.
Aliás, os africanos cultivam a arte de contar e ouvir histórias, dizendo-se até que a tribo nômade dos bosquímanos do sul de Angola e deserto do Kalahari têm o hábito de contar duas ou três histórias ao mesmo tempo, durante o dia, enquanto saem para caçar, e só fazem o encerramento delas quando param, ao fim da tarde, no local que escolhem para pernoitar.
Uma das fábulas angolanas mais conhecidas é a que se narra a seguir:
O LEÃO E O COELHO
O leão gostava de uma moça muito bonita e foi falar com os pais dela para obter permissão para desposá-la.
Os pais concordaram com o namoro e o casamento, mas pediram ao rei da selva um dote ou “alambamento” de dois coelhinhos. O leão prontamente concordou com a exigência dos potenciais sogros.
Regressado às bases do seu território dominante, o leão encontrou dois coelhinhos desavisadamente a brincar sozinhos fora da sua toca. Atraiu-os ardilosamente e confinou-os numa sacola.
Enquanto se dirigia para casa dos futuros sogros, no caminho encontrou o coelho, e convidou-o para ajudar a carregar a sacola com o dote. O coelho aceitou a convite.
Durante a viagem, o coelho engendrou um estratagema para averiguar o que o Rei dos animais levava na sacola. Então, fez um pedido ao Rei dos animais:
-Senhor leão, preciso ir ali ao mato fazer as minhas necessidades.
-Vai lá! Acedeu o leão.
O coelho aproveitou-se da ocasião e espreitou o que estava dentro da sacola. Ficou surpreso e consternado de ver os seus dois filhos lá dentro.
Assim, decidiu vingar-se. Depois de tirar os dois coelhinhos, encheu o saco com um enxame de abelhas. Chegados a casa dos seus futuros sogros, o leão disse ao coelho:
 -Amigo, podias sair um instante para eu tratar de uns assuntos particulares com estes senhores.
-Com certeza, senhor leão, eu saio, mas não será melhor fechar bem a porta e até amarrá-la para que eu não tenha possibilidade de ouvir uma conversa tão sigilosa?
O leão aceitou a sugestão do coelho que amarrou a porta por fora com cordas muito fortes. Quando o Rei da Selva abriu o saco, para que os futuros sogros vissem os dois coelhinhos, as abelhas começaram a ferroar todos os que se encontravam dentro da casa. Ao ouvir os urros e gritos que vinham de dentro, o coelho regressou apressadamente à sua toca, bem contente com os seus filhotes sãos e salvos.
MORAL DA HISTÓRIA: Quando te sentires ameaçado por quem está numa situação aparente de maior força, lembra-te que sempre é vitorioso quem faz uso sábio e eficaz do maior poder que é a inteligência!
Um grande abraço do
Kabiá-Kabiaka.

sexta-feira, janeiro 11, 2013

ACONCHEGO



Este aconchego
em que, num apertado abraço,
me achego,
é o amor que te devolvo
no meu forte aperto
feito um nó cego.
É o calor ardente
que o suave passear
das pontas dos meus dedos sente.
É o ofegante sussurrar,
quase silente,
que o ouvido da noite pressente.
Enfim,
é o teu grito
de ovação
em que me aturdi
na minha explosão
dentro de ti...

Lúcio Huambo
Blumenau, 29/12/2012


“Eu quero mesmo é ficar em casa
no aconchego das curvas de teu violão,
beijando essa boca fresca de hortelã,
quarando a madrugada pra te consumir”.

Zeca Preto