terça-feira, julho 29, 2008

PASSADO PRESENTE

Pôr-do-sol no Katofe, em julho de 2008. Fotografia gentilmente cedida por Jorge Oliveira

À terra que me viu nascer,... Angola.



Porto, 13/11/1982

Na janela, as gotas do vapor condensado...
Na retina, as imagens por ele coadas do exterior...
Sinto-me mais só, mais recolhido, mais confortado...
Lembro-me das coisas tristes e belas dum passado teimosamente presente;
Sinto no corpo as riquezas e pobrezas da minha terra distante...
A pele empolada pelo sol escaldante;
Nas veias, o sangue dos heróis duma guerra insensata;
No coração, a angústia e o ódio dos eternos escravizados;
Na mente, a desilusão dos efêmeros desterrados.
Ainda me lembro da meninice livre e despreocupada;
Nas costas do Malua, explorando a savana;
Tagarelando o “kimbundu”;
Mastigando o “salalé”;
Saboreando o “tortulho” e o “funge”;
Caçando os pássaros com fisga e visgo;
Esfolando os sapos com precisão milimétrica;
Calcorreando as “picadas” estreitas e sem fim;
Os pés saltando nas poças enlameadas;
As sandálias filtrando o pó dos “carreiros gentios”.
Vejo cair a chuva copiosa e morna,
Numa harmonia compassada pelas trovoadas ensurdecedoras,
O vapor subindo da língua alcatroada,
O asfalto derretido pelos raios abrasadores,
O pôr do sol cor de fogo,
O “cacimbo” do frio penetrante,
As colunas fumegantes das “queimadas,”
O “capim” verde das primeiras chuvadas,
As altaneiras pedras negras da “fazenda”,
As “baixas” infinitas duma terra acabada.Tudo acabou! Tudo passou! Mas tudo está presente!

segunda-feira, julho 28, 2008

KOTA KIMBAÇA

Frequentemente, a anunciar o romper da aurora na savana do Katofe, fui acordado por pelo chamamento peculiar:

- Oh Juuuustiiiiiiiiiiiiiino! Oh Juustiiiiiino! Oh Juuuusttiiiiiiiiiiiino!

Algumas vezes, os gritos eram entremeados com expressões de apelo ao aprimoramento da alma que passava essencialmente pelo suor da labuta rotineira com as vacas leiteiras, embora sem descurar alguma referência material: “o dinheiro está fundo, vamos trabalhar!”.

-
Pronto patrão! Resposta antecedida por grande assobio que só os pastores sulanos[1] sabiam dar, para conduzir o gado até à chunda[2] para a ordenha da matinal e vespertina ou em dias de vacinação e de capar garrotes.

E, logo, se ouviam os passos apressados do Justino e do filho, seguidos pela sonoridade do diálogo ameno das primeiras ordens do dia do
Kota[3] Kimbaça[4] e o tilintar de baldes e bilhas, limpos de véspera, prontos a sentirem o morno escorrer do leite esguichado das tetas amaciadas por mãos calosas.

O ritual protagonizado pelo Kota Kimbaça – o Sr. Emílio Dias, um dos três primeiros povoadores europeus da savana do Katofe – e o Justino, um esguio pastor bailundo
[5] que se estabeleceu no Katofe desde os primeiros anos da constituição da sociedade Oliveira & Dias – entre os primeiros povoadores João de Oliveira, André de Oliveira e Emílio Dias – era o relógio de despertador para quem morava por perto. Quantas vezes esses ruídos subterrâneos, de tão cedo que se manifestavam, pelas quatro horas da madrugada, geravam protestos de vizinhos mais sonolentos e mais afeitos ao quente dos lençóis, principalmente, quando o cacimbo se fazia presente com a sua neblina de frio cortante.

-
Filho da mãe desse Velho Kimbaça tem que me acordar assim tão cedo no cacimbo para ir tirar meia dúzia de litros de leite! Era o protesto do meu irmão Paga-Fogo[6], que nas férias grandes de junho a setembro ganhava os maiores elogios dos maiores amantes açorianos das vacas leiteiras que se admiravam de ver um estudante exibir as suas vocações veterinárias, tão cedo, pelas cinco horas da madrugada, com as kinamas[7] bem enfiadas em botas de borracha de cano alto, como exigia o figurino. Já, para o sono do Kabiaka os gritos do Sr. Kimbaça soavam como um breve interlúdio musical que separava o quarto do quinto sono, este, sim, fadado a terminar lá pelas oito da matina, a correr, para abrir a loja com algum atraso.

Kimbaça foi o apelido do Sr. Emílio Dias que mais se popularizou entre os
kimbundus[8], mas também me lembro de outro que tinha mais a ver com uma atividade que ele desempenhava religiosamente todos os dias, nos tempos da minha primeira infância, quando ainda não havia rede de distribuição de água no Katofe – a “água encanada”, no dizer dos açorianos. Então, o Kota Kimbaça assumia o papel de Kimbuka Mema[9] e se dirigia acompanhado por algum servente à fonte de águas cristalinas mais próximas, com um barril que rolava vagarosamente pelo caminho, puxado por um arame com as extremidades presas a dois eixos de um lado e outro do barril.

Nos primeiros tempos da colonização açoriana da savana do Katofe, o Sr. Emílio Dias era conhecido por grandes qualidades que transcendiam em muito o seu perfil corpulento ou o significado dos seus apelidos kimbundus. Era dotado de uma força que o levava sempre a executar primeiro as tarefas para mostrar aos funcionários africanos como se devia fazer. E era digno de ver os circunstantes com olhares arregalados de admiração quando o Kota Kimbaça avançava sobre uma gamela cheia de sal, feita em meio tronco de árvore, para desenterrá-la da lama, no tempo da estação das chuvas; sozinho, abraçava aquela gamela, sem deixar cair o sal, e prontamente a desenterrava e a colocava num lugar mais seco para repasto mais tranqüilo das suas vaquinhas amadas. Também, em dia de capar garrotes era vê-lo sozinho enfiar dois dedos nas ventas do bicho e com a outra mão dar uma torção nos cornos para que o animal se estatelasse no chão em mugidos sufocados. Quando chegava a vez dos kimbundus, estes rodeavam o garrote repetidamente, com incitações de
“Kwata ku mutu! Kwata ku mutu! kwata ku mutu!”[10], orientados pelos gritos de incitamento e orientações do Kota Kimbaça, já, esfalfado em sucessivas exemplificações, até que, após alguma correria, o bicho era rendido. Diziam as boas línguas que a sua força, nos seus melhores tempos, era suficiente para fazê-lo abraçar sem vacilações um tambor de duzentos litros de óleo de palma e colocá-lo sobre a carroceria de uma carrinha[11]. Quanto à superior capacidade de domar vacas e bois bravos, eu sou uma testemunha viva e fiel. Um dia, assistia à ordenha, empoleirado na cerca do curral onde mais tarde foi construído o estábulo do próprio Kota Kimbaça, resolvi descer para brincar com o vitelo de uma vaca meio gentia de nome Humpata. Em dado momento, a Humpata lá achou que eu não tratei bem a sua cria e, para minha surpresa e gritaria, resolveu pegar-me contra a cerca; valeu-me a presença do Kota Kimbaça que munido do banco da ordenha deu umas bordoadas na minha agressora. Desde esse tempo, se eu gostava pouco de vacas leiteiras, fiquei a amá-las menos, ainda, para grande desonra do aglomerado katofiano, onde vigorava a lei de que qualquer ocupação que merecesse o nome “trabalho” sempre devia passar por algum cheiro a leite e a bosta de vaca.

Figura 1 – Mapa etnográfico de Angola, conforme Ferreira Diniz.

A minha maior admiração pelo Kota Kimbaça, passava pela maneira como ele sabia dirigir como ninguém os bois que puxavam a carroça ou as alfaias agrícolas:

- Pra cá Chibante, pra lá Amante! Encosta pra canga boi!

Lá ia falando ele brandamente, de aguilhada na mão a tocar levemente o dorso dos animais. E os bois seguiam as suas ordens de imediato como se fossem conduzidos por fios elétricos.

Figura 2 – Kota Kimbaça a lidar os bois na eira, para regalo dos seus pequenos admiradores: Lúcio Matos, São Dias, Idalina Dias, José Estevam Matos, Maria Ângela Dias, Linita Dias.

Kota Kimbaça também fez alguns discípulos entre os kimbundus na nobre arte de tornar sem muito esforço os animais mais bravos inclinados ao trabalho da lavoura, quiçá, um dos que são vistos na Figura 3, correspondente a uma fotografia tirada no Katofe, em julho de 2008, durante as horas matinais de cacimbo.

Figura 3- Kimbundus do Katofe com a sua junta de bois (Foto tirada em julho de 2008 pelo nosso amigo Katofiano Jorge Oliveira, filho do maior pioneiro Katofiano João de Oliveira ou João do Katofe ).

Também, cabe aqui rever a poesia e a fotografia do nosso post MUITA BANGA, em http://kabiaka.blogspot.com, por mim escrita, em 11/06/2006, quando me deslumbrei com a criatividade evidenciada na concepção da carroça da foto:
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Oi Chibante!
Oi Amante!
Encosta pr'á canga,
Pr'á frente boi...
Oi Suzuki!
Oi Toyota!
Tempo do Kota Kimbaça já foi...
Minha carroça tem mais banga,
Pr'á canga boi,
Como no tempo do Kota,
Não sai da rota...

Figura 4 – Novo Toyota angolano com tração triplamente turbinada.

Apesar da minha grande admiração por ele, como não podia deixar de ser, o Kota Kimbaça também foi uma vítima das minhas artes de Kabiá-Kabiaka. Antes dos meus 4 a 5 anos (1957-1958) conheci a NSU do Kota Kimbaça; era uma motorizada de pedais em cima da qual se escarrapachava , para gáudio dos mais novos e dos kimbundus, a grande massa do seu dono encimada por um chapéu de abas largas. Nos últimos tempos dos anos 1960 e primeiros de 1970, ele referia-se a ela como a Velha e, muitas vezes, o ouvi pedir para o seu filho caçula:

- Oh António, traz a Velha!

E, como a Velha não pegava mais nos pedais, ele dava uma corridinha para o necessário embalo e montava rápido na garupa da cansada magrela, enquanto soltava a embreagem para ela pegar no tranco. Na chegada, desligava o motor antecipadamente e usava os pés a arrastar no chão para ajudar os travões bastante desafinados. O arranque e a chegada eram espetáculos tão dignos de ser vistos como a viagem rumo ao sul da povoação. Se a Velha falasse certamente expressaria o seu Muito Obrigado diariamente ao seu dono por tanta estima e fidelidade, pois, em vez de Velha, eu preferia designar a NSU por “Não Se Usa”.
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Figura 5- Motorizada NSU modelo Quickly Luxus, similar à Velha do Kota Kimbaça.
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Mas, quando a NSU do Kota Kimbaça, era novinha em folha, eu por duas vezes resolvi dificultar-lhe o arranque. Aproximei-me sorrateiramente dela e puxei a mangueira da gasolina, após abrir a válvula abaixo do tanque; saboreei o meu veneno a escorrer pelos cantos dos lábios, a ver o combustível a derramar-se pelo chão. Depois, da minha varanda, esperei que o Kota Kimbaça fosse dar o arranque; ele pedalava vigorosamente até cansar e nada... A certa altura, chacoalhou o tanque entre as pernas e verificou que estava vazio. Só, então, verificou que a mangueira que ligava o tanque ao carburador estava solta. Quando ele contou ao meu pai, já com suspeitas do autor da façanha, o Kilamba Vicente olhou-me de soslaio e disse:

-
Foste tu!

Não respondi, mas o olhar matreiro me denunciou.

Na segunda vez, logo após a primeira pedalada, o Kota Kimbaça já desfrutava do “saber de experiência feito”, cantado por Camões, e soltou um brado de protesto que me fez estremecer na varanda, onde o espreitava.

- Ah, Lúcio, Lúcio!...

Nunca me esqueci dos gritos, nem do puxão de orelhas que levei de um pai desiludido por ter um filho fabricado tão fora do molde da família.

A finalizar, eu sei que o Kota Kimbaça, do mundo espiritual para onde partiu, quando morava nos Estados Unidos da América, ao ver-me lembrar estas histórias, solta a sua gaitada e expressão de admiração com o seu timbre pessoal, que tantas vezes escutei no Katofe quando se sentava em ameno
sunguilar[12] numa roda de colonos Katofianos:

-
Iá-iá, ia-iá, iá-iá... Pópilas patrício!

Para ele e todos os que me lêem, envio o saudoso abraço do
Kabiá-Kabiaka.

[1] Designação dada pelos habitantes de Luanda a quem nasceu no sul de Angola.
[2] Estábulo, curral de tratamento do gado.
[3] Mais-Velho, designação dada pelos angolanos a pessoas de mais idade, mais experientes e sábias, merecedoras de admiração e respeito pelos mais novos.
[4] Gordo, pessoa de porte avantajado.
[5] Natural da região do Huambo – Angola.
[6] Apelido dado pelos indígenas ao meu irmão José Estevam da Silveira Matos.
[7] Pernas.
[8] Povos da etnia Kimbundu (ver mapa etnográfico de Angola), que ia incluía dos grupos Quibala, ao sul, a Dembos, ao norte, e de Songo, a leste, a Ngola, ao oeste.
[9] Busca-Água, por tradução literal do Kimbundu.
[10] Pega na cabeça! Pega na cabeça! Pega na cabeça!
[11] Camioneta.
[12] Conversar.

sexta-feira, julho 25, 2008

GALERIA NEVES E SOUSA

Moça da Gabela

Menino de Luanda

Feiticeiro Chipalanca

Pastor Mucubal

Soba de Malanje

Moça da Huíla

Moça de Angola

Moça de Angola

Moça de Angola


Moça Mucubal

domingo, julho 20, 2008

PENDÊNCIAS KATOFIANAS

Você já ouviu falar em “detrator”? Esse vocábulo provém da palavra latina “detractore” e se refere a quem detrai, do verbo “detrair”. E o que é detrair? É abater o crédito de alguém, depreciar o seu mérito, a sua reputação ou a fama, difamar, infamar, detratar.

Eu nunca me preocupei que a minha imagem passasse pela unanimidade da aprovação de quem me conhece, até porque, como dizia Nelson Rodrigues: “toda a unanimidade é burra”. Contudo, nunca pensei que passados mais de 30 anos da minha saída da savana do Katofe, agora, com quase 55 anos, com cinco filhos, e a residir numa recôndita cidade do Sul do Brasil, a centenas de quilômetros do Katofiano mais próximo, houvesse algum Katofiano interessado em detrair a minha imagem pública, com base em percepções por ele colhidas no passado. Assim é, realmente, prezado leitor!... Alguém, recentemente, me transmitiu que na boca de um ou outro Katofiano eu sou visto com muitas reticências, a ponto de um deles me chamar de “louco” por ter adotado três filhos no mesmo dia, o que já ocorreu em 1996. Vem a propósito lembrar o que escreveu Saulo de Tarso: “Para envergonhar os sábios, Deus escolheu aquilo que o mundo acha que é loucura; e, para envergonhar os poderosos, ele escolheu o que o mundo acha fraco” (1 Coríntios 1:27).

Eu encarei a notícia com uma risada salutar. Poderia até ter deixado por isso mesmo, mas como “quem não deve não teme”, resolvo voltar aqui ao assunto para contribuir positivamente para que o nosso mundo se torne sempre um lugar melhor para se viver. Aliás, quem me lê já deve ter notado que os meus escritos se pautam essencialmente pela positividade; recordo um passado na savana do Katofe com o objetivo de lançar luz no presente, reforçando a identidade e auto-estima de quem por lá passou, e não com melancolia ou revolta por algo que poderia ter ocorrido de forma diferente, quanto à descolonização, como vejo em outros blogs; também, não procuro escrever sobre coisas negativas do presente africano, embora quando falo de vicissitudes o faço sempre a apontar esperançosamente para dias bem melhores.
Assim, quando escrevo sobre o assunto dos meus detratores katofianos, o faço com o único objetivo de desatar os nós que porventura entre nós existam, pois só desatando os nós que aparecem na nossa vida é que podemos ser livres. Portanto, meus detratores katofianos, vocês desejam ser livres? Então, venham comigo aqui desatar os nós. Resolvam aqui as pendências que têm comigo. Livrem-se das coisas mal resolvidas, dos sentimentos amarrados e, aos poucos, vocês se libertarão...

Eu acho que posso dar uma grande ajuda nas reflexões que escrevo a seguir.

O VALOR DA CRÍTICA

Por que é que eu ri ao tomar conhecimento das ressalvas e críticas negativas de alguns katofianos a meu respeito?

Em primeiro lugar, porque eu não aceito todos os presentes que me querem dar, principalmente, se os identifico com o célebre “presente de grego”. Se alguém me dá um presente, e eu não aceito, então, com quem fica o presente? Resposta óbvia: com quem quer dar o presente; o presente não sai da procedência. Realmente, hoje, eu sou “macaco velho”, e nunca tomo para mim os sentimentos de outrem que vêm carregados de lixo emocional. Há pessoas que não conseguem controlar as suas emoções negativas e, por isso, acreditam poder sentir um alívio se as transferirem para outros, isto é, acreditam poder controlar o universo emocional dos outros, elegendo alvos ou vítimas e fazendo aliados para atingir os alvos eleitos. Como diz o brasileiro: “comigo o buraco é mais em cima”.

A segunda razão da minha satisfação, ao ouvir as críticas, é que, no presente, eu encaro todos que encontro na minha caminhada da vida terrena, dos mais humildes aos mais poderosos, como verdadeiros mestres, então só tenho a aprender algo de bom com quem encontro. Realmente, quando identifico a crítica como sincera, ela se torna para mim num saudável sinal de alerta para a correção dos meus defeitos, que não são poucos. Às vezes, os elogios muito entusiasmados são venenos que criam ilusões e debilitam o meu espírito, principalmente, quando são desprovidos de sinceridade, ou seja, pura bajulação.

O que eu menos desejo é que quem aqui me lê encare esta minha mensagem como uma censura ou julgamento dos meus detratores katofianos. Embora só me esforce por recordar e escrever sobre as boas ocorrências que vivenciei no Katofe, por lá não era tudo rosas. Então, era muito natural que lá também rolassem intrigas e traições, como em todo o lugar debaixo do sol. Portanto, é absolutamente natural que de lá me tenham sobrado alguns dos meus detratores atuais.

Tenho como norma de conduta não julgar os outros. Eu não sou capaz de saber ou de sentir o que cada Katofiano sabe ou sente. Quiçá, os meus detratores katofianos tenham justificativa para sentirem o que sentem por mim. Assim, também, ninguém mais é capaz de saber ou sentir o que só eu sei e sinto, ou soube e senti, quando assumo ou assumi certas ações e reações. Numa coisa vamos concordar agora, como estamos sempre em busca da sabedoria para melhor viver, devemos lembrar o pensamento: “o sábio não julga, apenas observa e aceita, se possível”.

COMO AVALIAR O CERTO E O ERRADO

Prezado conterrâneo Katofiano: quem sou eu para lhe dizer o que é certo e errado? Quem é você para me dizer o que é certo e errado? Antes, vamos nos empenhar em descobrir realmente quem somos nós além do certo e do errado.

Quando percebermos muitos defeitos num indivíduo, principalmente, se for outro patrício katofiano, a melhor estratégia a seguir para a nossa própria saúde mental é começar a procurar nele qualidades virtuosas para elogiar. Não basta imaginar elogios que poderíamos fazer àquela pessoa. É melhor agirmos com muita sinceridade e persistir na busca de qualidades positivas, aliás, que qualquer ser humano tem. A tendência natural é que à medida que formos descobrindo pontos fortes na pessoa examinada nos surpreendermos com a nova pessoa que surgirá na nossa frente. Essa pessoa ainda terá defeitos; mas também qualidades. Você já tentou fazer isso a meu respeito, meu detrator Katofiano? E já tentou fazer esse exame consigo mesmo? Faça e a sua auto-estima se elevará muito!

Na há solução, temos que compreender e aceitar os outros katofianos como eles são. Evitemos magoá-los ferindo o seu amor-próprio. Cada um tem as suas razões para agir ou ter agido deste ou daquele jeito. Você tem ou teve as suas e eu tenho ou tive as minhas. Além disso, o que há de mais valioso nesta vida é a experiência. Já dizia o maior dos Lusíadas, entre os quais nos orgulhamos de pertencer: “Não há como o saber de experiência feito” (Luís de Camões). E a experiência não é só acumular conhecimento; é muito mais, é essencialmente errar e aprender; e errar novamente. Não seja tão reprimido e repressor! Experimente! Aprenda também errando! Se você jogar esse jogo, você nunca se dará mal, porque a vida é um jogo em que não há ganhador nem perdedor. Quem ganha é o jogo.

Agora, se você é um perfeccionista, só tem um jeito de se curar dessa doença, que é colocar na sua cabeça o seguinte conceito: “a perfeição é o melhor que você pode fazer naturalmente”. Portanto, tudo o que eu fiz no Katofe, quer encaixe ou não no seu código de crenças e valores, meu amigo katofiano, eu fiz tudo com absoluta perfeição porque o fiz tudo o que pude e muito naturalmente. Não tenho que me arrepender de nada. Eu nunca errei, só aprendi! Ainda mais, eu começo cada dia de vida perdoando a mim mesmo pelas eventuais besteiras que vou realizar durante o dia, pois só erro por inexperiência e não por ser portador de um mau caráter, seja herdado ou cultivado. As pessoas de mau caráter não conseguiam se criar no nosso Katofe; e eu me criei lá!

Quem vive com a pretensão ou soberba de ser o “certinho” da família, de sempre acertar e nunca errar, um dia cai estrondosamente do cavalo da sua perfeição. Nesta vida somos meros equilibristas. O equilibrista só consegue se equilibrar porque seu andar é desequilibrado. Ele anda de acordo com a tensão da corda e parece sempre que vai cair. Se ele seguisse duro e direito, com certeza cairia, porque a corda é bamba. Você, meu detrator katofiano, chegou aonde chegou na vida porque não andou sempre duro e direito, então, por que tem a veleidade de exigir que eu fosse sempre duro e direito, principalmente, nos meus tempos de liberdade da meninice e juventude do Katofe? Não seja tão rígido, seja mais maleável em suas opiniões e exigências! Lembre-se que o bambu verga, mas não quebra, porque é flexível e não rígido.

O SER HUMANO É DINÂMICO

Meu amigo Katofiano, você sabe o que é preconceito? O preconceito é o dogma da mente. É você ser dominado por idéias que você não sabe nem se são suas. Se você não quer ser preconceituoso e, sobretudo não julgar os outros com preconceito, então, esvazie-se um pouco, torne a sua carga mental e emocional mais leve, jogue fora velhas idéias e velhos conceitos que apenas turvam a visão e não o deixam enxergar o novo. Na savana do Katofe, aprendemos juntos que as folhas caídas da mulemba na frente da igreja jamais retornavam à árvore. Portanto, desprenda-se do passado e não viva de más lembranças. Recorde apenas as boas lembranças porque essas, sim, podem ajudar você a viver mais intensamente o presente, o agora. Viva o agora!

Eu não sou o que você pensa de mim. Ainda, não sou mesmo o que eu penso de mim. Então, quem sou eu? O que menos interessa é pensar nisso. Você é o que é, e isso lhe basta! Eu sou o que sou, e isso me basta! Cada um é o resultado das suas ações. Examinando o meu estado atual, pelos vistos, as minhas ações passadas foram muito boas! Não tenha dúvida! Mas, uma coisa é certa: nunca sou todos os dias a mesma coisa, portanto não posso ser quem você conheceu no Katofe...

Alguém disse: “A vida é um eterno ensaio. Repetimos todos os dias as mesmas coisas. Mas nunca é a mesma coisa”. O dia é claro e a noite é escura. Mas há o amanhecer e há o escurecer. Tudo é um processo e tudo se transforma. Tudo na vida é movimento. O dinheiro está em movimento, o ar está em movimento, o sangue está em movimento. Então, não se prenda aos sentimentos negativos. Isso é mesquinharia. Deixe o sentimento negativo chegar, observe-o e deixe-o afastar-se de você. Não fique se remoendo ou agarrado a um sentimento negativo que já deveria ter passado, antes, deveria ter ficado lá no tempo da sua vida no Katofe.

Gosto muito de recordar a experiência de vida dum pintor japonês que pintou apenas um quadro em toda a sua vida. Quer dizer, ele pintou o mesmo tema inúmeras vezes, durante toda a vida. Ele mostrou que também nós podemos pintar o mesmo quadro todos os dias, mas nunca um quadro será igual a outro. Assim, ocorre comigo – o Lúcio de hoje não é o mesmo de ontem e, muito menos, o Lúcio do Katofe!
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Um grande abraço do Kabiá-Kabiaka.

sábado, julho 19, 2008

PEDRAS KATOFIANAS


Pedras das baixas do Katofe, na Kianza. Foto tirada por Armando Enes.

Pode um homem amar a pedra dura?
Claro, várias eu amei
com Alma pura...
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A algumas não sei
como tanta ternura dediquei.
Eram de carne feita pedra,
tão frias,
tão inertes,
mas, mesmo assim, amei.
Como, não sei?!
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Outras eram mesmo pedra,
dura e duradoura,
como dura o amor
que é eterno enquanto dura...
.
Madeira feita pedra
na cidade chamada Mata,
a Cidade da Pedra que foi madeira
da mata brasileira.
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Terra feita pedra,
tão altaneira,
que se fez humana
na Alma Açoriana
plantada na savana:
a Alma Katofiana!
.

Madeira transformada pela natureza em pedra, na cidade da Mata, a Cidade da Pedra que foi madeira, Rio Grande do Sul, Brasil.

PEDRA:
POEMA PARA HENRY MOORE

Emanuel Félix
Poeta Açoriano

Um homem pode amar uma pedra

uma pedra amada por um homem não é uma pedra

mas uma pedra amada por um homem

O amor não pode modificar uma pedra

uma pedra é um objecto duro e inanimado

uma pedra é uma pedra e pronto

Um homem pode amar o espaço sagrado que vai de um homem a uma pedra

uma pedra onde comece qualquer coisa ou acabe

onde pouse a cabeça por uma noite

ou sobre a qual edifique uma escada para o alto

Uma pedra é uma pedra

(não pode o amor modificá-la nem o ódio)

Mas se a um homem lhe der para amar uma pedra

não seja uma pedra e mais nada

mas uma pedra amada por um homem

Ame o homem a pedra

e pronto

terça-feira, julho 15, 2008

FILOSOFIA DAS BAIXAS DO KATOFE

Orquídea da savana do Katofe (Foto tirada e gentilmente cedida por Albano Faustino)
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A minha primeira lição de filosofia eu tive – melhor, vivi – nas baixas do meu Katofe...

Era nos tempos em que, bastas vezes, fugi à vigilância do “Capitão da Malta” – precisamente, a minha mãe – para ir tomar banho na vala que tinha servido à rega do arroz em escassos anos de experimentação agrária de açorianos que fugiram à teimosia da sua vocação pecuária de domar vacas leiteiras, ainda, muito gentias. A vala ficava no fundo da baixa, é mesmo, aquela bem na frente da igreja e da Casa do Divino Espírito Santo, do outro lado da estrada alcatroada Nova Lisboa – Luanda, a uns 2 ou 3 km da minha casa, que as minhas pernas curtas e lestas galgavam velozmente, para chegar bem perto do rio Katofe, onde também havia uma fonte de água cristalina que abastecia continuamente a vala que ia escoando lentamente para o rio. Ali me banhava nos meus cinco a sete anos, desde o início da tarde até que a trovoada me alertava sobre a chegada célere da chuva em cascata, esta sim a única que me enxotava rapidamente para catar as roupas pousadas na primeira touça de capim e divergir numa carreira até, a uns quinhentos metros, às kubatas da família do Velho Kibuba, de quem um dia vos falarei em maiores detalhes, o alfaiate mulato da firma Oliveira & Dias e, mais tarde, do comércio do Kilamba Vicente. Por vezes, a trovoada e a chuva só davam uma folga ao cair da noite, que naquelas paragens tropicais chegava cedo, pelas 18 horas e pouco. Quando isso acontecia, geralmente, era conduzido de volta à morada paterna pelos filhos do Velho Kibuba, o Carlos e o Moreira, que eram meus professores do pouco kimbundu que aprendi e companheiros inseparáveis de aventuras no desbravar da savana, principalmente, na meticulosa arte de esfolar sapos, com lâmina Nacet, e encher as respectivas tripas com areia para comercializar como chouriço (se na propaganda de rádio dos adultos a lâmina Nacet cortava até jacaré, por que não poderia ser utilizada para esfolar sapos?); ao chegar a casa, geralmente, era recebido pelo Mais-Velho com um olhar que eu só identifiquei mais tarde como misto de sebastianista, por esperar ansiosamente “O Desejado”, e de pai do fadado desde o berço a eterno filho pródigo...

Naquelas baixas, o flutuar das nuvens, o farfalhar das folhas, o sibilar do vento, o dançar do capim, o refrescar da chuva, o escaldar do calor, o tiritar do cacimbo, o rumorejar do rio, o fumegar das queimadas, o coaxar dos sapos, o cantar do cuco, o esvoaçar das andorinhas,..., ensinaram-me a quintessência do Dharma do Buddha: “Todas as coisas são impermanentes”, ou seja, o que aqui encontramos de mais permanente é a impermanência; e, também, do Evangelho do Cristo: “Vejam os passarinhos que voam pelo céu: eles não semeiam, não colhem, nem guardam comida em depósitos. No entanto, o vosso Pai , que está no céu, dá de comer a eles. Será que vocês não valem muito mais do que os passarinhos? E por que vocês se preocupam com roupas? Vejam como crescem as flores do campo: elas não trabalham, nem fazem roupas para si mesmas. Mas eu afirmo a vocês que nem mesmo Salomão, sendo tão rico, usava roupas tão bonitas como essas flores. É Deus quem veste a erva do campo, que hoje dá flor e amanhã desaparece, queimada no forno”.

Entre o Buddha e o Cristo, veio Heráclito de Éfeso (540 a.C. – 470 a.C.) a proclamar: “Tudo flui, nada permanece”. E, bem depois, Cecília Meireles (1901-1964) com “O sou e não sou no que estou sendo”. E, Rubem Alves (1933-) com a incontestável sentença: “Todo ser é um permanente deixar de ser”.

E é assim que eu rememoro a savana do Katofe. Sou Katofiano – gosto mais que de katofense, porque Katofiano rima com Açoriano – num permanente deixar de ser. Sou Katofiano e não sou no que estou sendo. A cada hoje brotam da minha mente flores katofianas que em cada amanhã fenecem. Tudo flui e nada permanece e me lembro que todas as coisas são impermanentes...

Realmente, a morte faz parte da essência da vida, porque a nossa vida acontece a morrer continuamente. É como o rio Amazonas que se desvanece no infinito do oceano, apesar da sua extensão gigantesca de 6.992 km das cabeceiras do rio Apurimac, no Peru, à foz no litoral brasileiro, que supera o comprimento do rio Nilo, contrariamente ao que aprendi no Colégio Alexandre Herculano, em Nova Lisboa; apesar da sua profundidade de 100 metros, maior que a altura do orgulho americano simbolizado pela Estátua da Liberdade; apesar da sua maior largura que é de 50 km, bem próxima do comprimento do Canal da Mancha; apesar dos 100 milhões de toneladas de sedimentos despejados mensalmente no mar, o que é só um volume bem similar ao do Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro; apesar do seu caudal de 200 mil metros cúbicos por segundo, que daria para encher a Baía da Guanabara em apenas 4 horas. Apesar de toda essa grandeza, que as mais potentes imagens de satélite ainda não conseguem divisar e detalhar inteiramente, o principal objetivo do Amazonas é perder-se no oceano, este, tantas vezes, usado como símbolo da Grande Vida, nosso maior alvo.

Em suma, por mais produtivo e intenso que seja o percurso da minha vida, assumo tranquilamente que ela é como a chama da vela que se vai queimando. E vivo a feliz certeza que a cera que me resta é algo menor, mas melhor, do que a cera que se queimou!
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Depois disto, me lembrei de algo que escrevi há quinze anos, já a residir em Blumenau-SC, na grande curva do rio Itajaí Açu, em 19/03/1993, juntamente com um pensamento de Emily Brontë:
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O SER
Onde achar o norte,
Se desnorteado procuro
Fora de mim
Um rumo,
Um sentido,
Uma resposta,
Um Fim?...
Olhei para o EU profundo,
Bem no fundo, o Infinito
Da interioridade do meu SER:
Eis o manancial de águas a sorver,
O espelho em que me reflito,
Enfim,... O meu Mundo!
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“Tudo o que importa é que em torno
Pairam perigos, dores e trevas,
Se na amplidão do nosso SER
Não há um céu límpido e claro”.

Emily Brontë (1818-1849).
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Um grande abraço do Kabiá-Kabiaka.