terça-feira, abril 24, 2007

NOSTALGIA E HISTÓRIA

Quando me reporto freqüentemente a estórias vividas no passado, não o faço por nostalgia, mas por fidelidade ao meu destino e por imperativo de contribuição a uma visão histórica.

Ao conversar com amigos da infância e da juventude, principalmente, os residentes no hemisfério norte, sinto neles uma abordagem nostálgica relativamente ao passado vivido em Angola. Já, quanto aos residentes no Brasil, não lhes noto a mesma atitude na recordação das vivências angolanas.

Para se entender a razão da afirmação anterior, convém refletir o que se entende por nostalgia. O termo foi originalmente cunhado pela junção de nostos, “voltar para casa”, com algos, “dolorido/desejar”, ao se referir a "uma doença dolorida que uma pessoa sente porque ela deseja retornar para a sua casa, sentindo pena ou medo de não ver/ter aquilo outra vez". Entre os séculos XVII e XIX os médicos diagnosticavam a nostalgia como uma doença, tendo havido casos que resultaram em morte, por isso, muitos soldados em guerra foram tratados com sucesso ao receberem licença para retornar às suas casas.

Assim, o neologismo nostalgia é muito usado para retratar o sentimento de pessoas que lembram as suas origens, geralmente distantes física ou temporalmente, ao sentir saudades de um tempo vivido, idealizado de forma irreal. É isto o que eu interpreto em muitos dos meus amigos que vivem, por exemplo, nos Estados Unidos da América. Parece que as benesses materiais que lhes foram trazidas em maior abundância pelos dólares não lhes preencheram um certo vazio na alma, o que não se passa com os menos aquinhoados que aportaram no Brasil.

Poderia dizer que o Brasil, quiçá, pela maior similaridade com a terra de origem, nos transmite uma visão nietzschiana sobre o destino. Para Nietzche, não se trata de olhar o destino com visão fatalista, como algo que arrasta quem o rejeita ou que inexoravelmente virá, mas como algo que está dado e que não pode ser mudado ou revivido. Portanto, nessa visão, resta-me amar a vida, amar cada ocorrência, tudo o que me sucedeu tal como ocorreu, na certeza de que “tudo o que não me mata me fortalece”, como dizia o filósofo.

O que dizer, então, das múltiplas frustrações, contrariedades e dificuldades vividas com a nossa experiência da saída de Angola? Simplesmente, amá-las! Isso significa amar a vida, isto é, o destino! Amar o destino é como tomar uma decisão sobre a vida, assumir a responsabilidade sobre o seu script e arcar com as conseqüências que dele nos advêm. Com esta visão eu escrevo sobre o Catofe, pois já foi comprovado pela Psicologia que as bases da nossa vida afetiva foram moldadas na infância e juventude e que reviver antigas experiências sem nostalgia é uma forma de nos reconciliarmos com a nossa história.

Ser responsável pelo destino ou história da nossa vida é ter sempre presente a divisa: “burn the bridge behind you”, ou seja, “queime a ponte que acabou de atravessar”. Após, incendiar a ponte, eu posso lançar um olhar para trás para admirar as belezas das terras do outro lado do rio, sem que isso faça crescer em mim o desejo de retroceder e sem me impedir de olhar as belezas na nova margem que acabei de alcançar... Aplica-se aqui, com muita propriedade, uma parábola de Buda que passo a contar no parágrafo que se segue.

“Certa vez, um homem, ao fim de uma longa viagem, chegou a um rio. Desejou alcançar a margem oposta, que lhe pareceu mais suave e segura. Então, construiu uma jangada com paus e vimes encontrados na margem de origem e atravessou com segurança o rio. Ao alcançar a margem oposta, ele pensou: ‘esta jangada foi-me muito útil para a travessia do rio; não a abandonarei, levá-la-ei comigo’. Assim, passou a carregar um fardo desnecessário. Pode este homem ser considerado sábio?” Ao sairmos de Angola, fizemos a grande travessia do rio da nossa vida de uma margem para a outra; não podemos fazer de qualquer coisa que trouxemos da nossa procedência – a jangada de paus e vimes – algo que se torne para nós um fardo desnecessário. A tendência humana é fazer da vida uma sucessão de apegos e sofreguidão, que tendem a produzir ilusões e sofrimentos. Precisamos somente de reviver antigas experiências sem nostalgia para nos reconciliarmos harmoniosamente com a História.